Além do consultório

Estamos habituados a conversar e ler a respeito da experiência de colegas que atendem a pacientes em seus consultórios. Quando pensamos em Psicanálise, a imagem da sala de Freud, mantida até hoje em Maresfield Gardens, em Londres, é uma referência iconográfica fundamental. O divã, a poltrona do analista, os objetos de arte, os tapetes… tudo isso constitui a imagem básica, o cenário analítico fundamental, as origens da profissão e do trabalho que seguimos desenvolvendo.

No entanto, alguns colegas se dispõem a levar a escuta analítica além de seus consultórios. A história dessa “clínica extensa”, como Fábio Herrmann a chamava, é antiga e profícua. O que vemos, nos últimos anos, é que ela tem crescido no país. Para os interessados, sugiro a leitura de “O psicanalista na comunidade”, lançado pela SBPSP, em 2013.

Entre nós, Carmen Balieiro é uma das colegas que tem se disposto a “ir aonde o povo está”, como diriam Milton Nascimento e Fernando Brant. Nesta primeira entrevista do ano, ela nos conta a respeito de sua experiência no projeto “Voluntários do sertão”, que desde 2000 leva profissionais de saúde e de outros campos a comunidades no interior da Bahia. Em abril de 2017, trezentos e cinquenta voluntários atenderam à comunidade de Irecê e cidades vizinhas, Carmen estava entre eles.

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Como será a experiência de atender em condições tão diferentes daquelas às quais estamos habituados?

Boa leitura a todos(as)!    

LUIZ TOLEDO: Você tem formação em terapia familiar e é uma profissional conhecida em Ribeirão por sua carreira como docente. Como surgiu o seu interesse pela psicanálise?

CARMEN BALIEIRO: Bem, na verdade a Psicanálise sempre fez parte da minha vida. Vou contar um pouco da minha relação e vínculo com a Psicanálise. Terminei meu curso de Psicologia na Universidade de Franca em 1996, desde então trabalho com Psicologia e com Psicoterapia de Orientação Psicanalítica. Tive uma experiência de psicoterapia pessoal durante a graduação, mas foi logo após ter me formado que tive uma experiência profundamente marcante de análise com o Dr. José Francisco de Oliveira. Nesta época, também iniciei grupos de estudos e supervisões (GEPPI) com o querido Di Loreto, que direcionou meus estudos na psicanálise durante anos, e também direcionou a minha entrada no universo vincular (atendimentos a casais e famílias), muitas vezes digo que ele foi um pai profissional para mim. Após um período de dois anos como voluntária do Serviço de Interconsulta Psiquiátrica do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, fui contratada em um Pronto Socorro de uma cidade vizinha à nossa. A principal demanda deste trabalho era lidar com a relação conflituosa estabelecida entre a equipe médica e os usuários do serviço. Esta experiência foi muito interessante porque foi exigido um trabalho vincular e relacional, e eu nem sabia muito bem como fazer isso dentro do referencial psicanalítico. Passei, portanto, a estudar grupos. Por estar vinculada à uma instituição de saúde, comecei a receber em meu consultório pacientes encaminhados por colegas médicos. Muitos destes casos se agrupavam em torno de problemas físicos (e emocionais) cujas implicações alcançavam as relações conjugais. Algumas vezes as queixas eram tão evidentes que me ocorreu, em certos casos, convidar o cônjuge para participar das sessões, mudando a forma de trabalhar de uma psicoterapia individual para uma psicoterapia de casal. A experiência se mostrou frutífera. Foi nesse momento que decidi buscar formação em Psicoterapia de Casal e Família na PUC-SP. A partir desse momento, passei a estudar outra teoria, que na verdade não é teoria mas um paradigma recheado de teorias, dentre elas a própria psicanálise. Fiz um mergulho neste paradigma complexo e passei a estudar vínculos familiares à partir do paradigma sistêmico-narrativo. Logo depois de minha entrada no mestrado na USP, no qual estudei a relação de cuidados familiares e sua relação com queimaduras na infância em ambiente doméstico, retomei a psicanálise associada aos vínculos familiares e suas implicações. Neste ponto, por volta de 2002, além das práticas que descrevi até agora, iniciei minhas atividades como docente na Universidade Paulista – UNIP, nas áreas de Triagem, Psicodiagnóstico Interventivo e Psicoterapia de Casal e Família. A vivência acadêmica ao longo dos últimos quinze anos, me permitiu ter uma rica experiência no atendimento de casais, famílias e fratrias (cerca de oitocentas famílias), tendo algumas vezes atendido, no mesmo grupo familiar, três gerações (avós, pais e filhos). Estes atendimentos, realizados na clínica escola da Universidade, permitiram desenvolver um modo (modelo técnico) de realizar e compreender as psicodinâmicas dos vínculos familiares. Essa experiência possibilitou, em 2010, além de desenvolver um modelo de avaliação dos vínculos, criar um curso de Especialização em Psicoterapia de Casal e Família de Orientação Psicanalítica (Lato Sensu), que está em pleno funcionamento até hoje. E neste mesmo ano, comecei a fazer parte do grupo de estudos do IPUSP-SP no laboratório de casal e família: clínica e estudos psicossociais. A psicanálise vincular junto com os teóricos psicanalistas argentinos e franceses foram introduzidos em meus estudos diários, dentre eles o querido Benghosi, que vem ao Brasil uma vez por ano desenvolver trabalhos clínicos e psicossociais. Buscando um maior desenvolvimento pessoal e profissional, tomei a decisão de me inscrever, em 2014, no processo seletivo para a formação de psicanalista no Instituto de Psicanalise da SBPRP. Então, foi assim que surgiu o meu interesse pela Psicanálise.

LUIZ TOLEDO: Você faz parte do projeto Voluntários do Sertão.

CARMEN: Sim, participei de quatro ações e duas edições.

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LUIZ TOLEDO: Trata-se de uma iniciativa que começou em 2000 e que atende à uma região carente do país. O que você pode nos contar a respeito?

CARMEN: A palavra voluntário advém do latim voluntarius que significa de própria vontade e desejo. O que faz um voluntário? Normalmente é alguém que faz o bem sem saber ao certo a quem, simplesmente por vontade e desejo. Os Voluntários do Sertão é uma ONG que tem por objetivo levar ações de cidadania e intervenções na área da saúde, para regiões sertanejas e indígenas do Brasil. Ou seja, busca acessar comunidades periféricas e isoladas para cuidar da saúde (física e mental). E, para isso, conta com voluntariado em rede nacional. Muitos desses profissionais voluntários são expoentes em suas especialidades. Em 2016 o atendimento psicológico ganhou espaço e reconhecimento através da realização de plantões psicológicos individuais e atendimentos em grupos. Isso foi uma conquista dentro do projeto porque, em edições anteriores, os psicólogos atuavam na área da educação, realizando palestras e intervenções na comunidade. O atendimento psicológico foi iniciado em 2016, é muito recente. Vou contar como isso aconteceu, foi por acaso, se é que os acasos existem (risos)… Como eu disse, o trabalho psicológico era pautado em atendimentos em grupos e palestras (sobre sexualidade, violência doméstica, álcool e drogas, emoções.. e por aí vai) e eu saí de Ribeirão Preto com várias palestras montadas e também pensando nos trabalhos em grupo. O que aconteceu foi que, no primeiro dia de intervenção, fizemos uma divisão de tarefas. Duas psicólogas foram para comunidades próximas realizar atendimentos em grupos, enquanto eu e a outra psicóloga ficamos com a equipe de saúde da família, para irmos nas comunidades ribeirinhas realizar palestras e orientações. Estávamos na escola central aguardando nosso transporte. Normalmente utilizamos escolas grandes para montar os consultórios médicos e também como ponto de apoio. Mas tivemos que lidar com o imprevisto, nosso transporte, um micro-ônibus da prefeitura, havia quebrado. Essas coisas acontecem, né? Tinha muita gente aguardando na fila do lado de fora da escola e eu fui dar uma volta pela escola para conhecer a estrutura interna e o público. Conversei com pessoas na fila de espera, várias pessoas. Voltei e disse à minha colega: “Olha, esse ônibus vai demorar, estamos no sertão… é a prefeitura do sertão… não sei… vai demorar… tem uma sala ali vazia. Acho que, com toda essa gente, nós vamos precisar oferecer plantão psicológico”. Bem, então fui verificar a viabilidade com a organização local e assim nasceu o plantão psicológico, em uma única sala no modelo de cochicho, e foi incrível. Atendemos muito e tivemos que mudar toda a logística das atividades programadas. Esse foi o nascimento do plantão psi… Posso dizer que tive uma oportunidade ímpar de implantar o plantão psicológico nesta edição. E foi uma experiência rica e híbrida. Estávamos em quatro psicólogas. Tive a oportunidade de atender índios individualmente, mães índias com seus filhos (vínculo mãe/filho, mãe/bebê), mulheres marisqueiras em vilarejos ribeirinhos. Neste ano ainda pude atender no cerrado e nas margens do rio São Francisco as famílias de agricultores. E também neste mesmo ano passei um dia inteiro atendendo no presídio feminino de Ribeirão Preto. Essas mulheres são esquecidas, foi uma experiência emocionante também. Um privilégio, um reconhecimento do trabalho clínico pela coordenação do evento e pela coordenação da equipe de saúde. Em 2017, a Psicologia ganhou um espaço maior e conseguimos montar uma Clínica de Saúde Mental, contando com uma médica psiquiatra, um enfermeiro psiquiátrico e mais cinco psicólogas com especialidades na área clínica. Várias especialidades como psico-oncologia, atendimentos individuais, atendimentos vinculares, familiares foi realizada, até avaliação de crianças e Psicodiagnóstico.

LUIZ TOLEDO: Conte-nos sobre as situações que você teve a oportunidade de viver no projeto.

CARMEN: Eu realizei vários atendimentos individuais e pude ter o privilégio de conviver muito de perto com índios Pataxós da Aldeia da Mata Medonha. Lá pude atender um grupo de mulheres e mães lactantes e, de fato, o aprendizado foi indescritível. Sabe que até fui batizada por eles? Eu tenho um nome Pataxó também, Mayõ, que significa brilho do sol.

A Aldeia da Mata Medonha ainda preserva alguns hábitos tradicionais de sua cultura, vivem mais isolados dentro da Mata, por isso o nome “Mata Medonha”, quase Mata Virgem, com todas as suas qualidades primitivas. Também tive a oportunidade de passar alguns dias em contato com famílias ribeirinhas. Há uma necessidade dessas pessoas de serem ouvidas, em sua maioria, com dores psíquicas relacionadas ao sentimento de exclusão, abandono e angústias existenciais, que estiveram presentes o tempo todo nas narrativas dos atendimentos. O contato com esta diversidade cultural e com a flexibilidade de um setting diferente, me permitiu ampliar e compreender a magnitude da dor humana, independente de sua etnia. Os afetos e conflitos, estiveram presentes o tempo todo e o maior desafio foi poder me adequar ao atendimento com essas pessoas. O que chamei de adequação ao atendimento se refere à uma abertura para “ferramentas técnicas” construídas no aqui-agora. E isso requer flexibilidade e criatividade para estar com o outro em um mundo adverso, com linguagens e culturas diferentes da minha.  

LUIZ TOLEDO: E como se dá esse trabalho em condições tão diferentes daquelas às quais estamos habituados? Como você lida com o setting?

CARMEN: É interessante a sua pergunta. Podemos pensar: quais são as condições em que o analista está habituado a trabalhar? É possível considerar que as condições nas quais um psicanalista trabalha sejam condições propiciadoras de um contato íntimo com o sofrimento humano. Em nossos consultórios normalmente compreendemos o sofrimento humano como sendo a expressão daquela pessoa que nos procura. No trabalho fora do consultório, penso que essa condição se mantém, ou seja, de alguma forma estamos sempre oferecendo uma escuta atenta e, se possível, continente ao sofrimento do outro. Deste ponto de vista o setting se amplia para além do enquadre clássico do consultório. O setting passa a ser compreendido como a relação que se estabelece entre os participantes de um processo que visa o estabelecimento de um diálogo, cujo propósito é ampliar as possibilidades de observação e pensamento. Me parece que, no enquadre tradicional, já admitimos que o setting inevitavelmente assume uma posição central na relação analítica, considerando o trabalho de duas mentes ou (em outras palavras) de diferentes grupalidades que se encontram ali.

LUIZ TOLEDO: Parece haver um movimento crescente de colegas que, através de projetos variados, estão interessados em trabalhar com populações carentes, eventualmente em condições desafiadoras. Me lembro, por exemplo, dos “Psicanalistas pela democracia” e da “Clínica aberta de psicanálise”. O que você pensa a respeito de iniciativas como essas?   

CARMEN: O movimento dos “Psicanalistas pela democracia” foi um ato político de um grupo preocupado em se manifestar publicamente contra a ameaça da perda de direitos sociais conquistados ao longo dos anos, é um movimento basicamente político. Já a “Clínica Aberta de Psicanálise” funciona como uma espécie de plantão psicanalítico em datas e horários específicos, que visa oferecer a escuta atenta da Psicanálise àqueles que não teriam acesso à outras formas de atendimento. Neste sentido, o trabalho de ir a campo, sair do consultório e oferecer esta escuta a comunidades menos favorecidas se assemelha mais à “Clínica Aberta de Psicanálise” do que ao trabalho dos “Psicanalistas pela democracia”. Minha experiência tem demonstrado que, ao sair de meu consultório, lugar em que desenvolvo o refinamento de minha escuta, me sinto em melhores condições para ir a campo e oferecer essa escuta às pessoas das comunidades menos favorecidas. E quando volto para o consultório, depois de uma experiência em campo, desenvolvo mais humanidade, para novamente estar com meus pacientes. Isto me faz lembrar da proposta de Freud de que a Psicologia Individual é, ao mesmo tempo, também Psicologia Social. Gosto de pensar nestes termos: o grupo que está contido dentro do indivíduo e o indivíduo que faz parte de um grupo.

Fiquei aqui pensando, por que não um plantão psicanalítico? Sonhar… viver… acordar… despertar… poetizar… ver a vida como ela é, a realidade do nosso país, da miséria do homem, a miséria social… a psicanálise é tão profunda e eu a vejo tão delicada, tão criativa. Nós que estudamos a tal da psicanálise temos uma escuta diferenciada, sabe? Vale a pena dividir e compartilhar essa escuta. Por que não um plantão psicanalítico? Gostei!

Obrigada pela oportunidade!

Awêry expoxey hamátxiha!