Entrevista com Dr. José Américo Junqueira de Mattos[1]

José Américo Junqueira de Mattos é membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro efetivo com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP), da qual foi um dos idealizadores e fundadores. Tem se destacado nos âmbitos nacional e internacional por meio de sua obra na área da teoria e da prática psicanalítica além de ter contribuído com inovação, no âmbito da formação psicanalítica. Em especial, tem sido um estudioso da obra de Wilfred Ruppert Bion, tendo o privilégio de ter sido analisado por ele, “Dr. Bion”, conforme se reporta a ele. Colocamos em relevo as seguintes publicações de sua autoria:

Minha Análise com Dr. Bion: Impressões – Comentários do autor; Impressões de Minha Análise com Dr. Bion; Análise Concentrada: três décadas de experiência; Metapsicologia dos Processos Cognitivos e Misconceptivos do Analista e Analisando; Uma Aproximação dos Conceitos de Transferência e Contra-transferência, Equação Simbólica, Empatia e Intuição, à Luz das Teorias de Bion sobre Pré-concepção, Função Alfa, Grade e as Idéias de Kant sobre a Coisa-Em-Si; Em Busca do Objeto Psicanalítico; Pré-Concepção e Transferência; Tomar Nota e o Uso de Memória e Desejo; Transferência e Contra-transferência como fatores da Transiência; Contra-transferência uma Revisão; A Contra-transferência e a Obra de Bion; Os Cinco Últimos Quartetos de Beethoven; Dos Distúrbios Obsessivo-Compulsivos às Relações Continente-Conteúdo; Anorexia Nervosa: um novo paradigma para as perversões; Entrevista com Bion 1 e Entrevista com Bion 2. Durante 15 anos, José Américo Junqueira de Mattos realizou pesquisa histórica e genealógica sobre a saga da família Junqueira, apoiado pela Lei Rouanet.

Dr. José Américo Junqueira de Mattos

HELENA FURTADO: O Sr. nasceu na imensidão mineira da fazenda Melancias e lá cresceu como um personagem de Mark Twain: livre nas águas do Rio Grande e, como menino que sai aos ventos, viveu infância inesquecível. Como essa raiz de encantamento influenciou suas escolhas futuras?

DR. JUNQUEIRA: Por mais análise que eu tenha vivenciado, nas quais trabalhei as recordações de minha primeira infância, é difícil aquilatar em que extensão essas experiências foram tão significativas para mim. A fazenda Melancias foi desbravada pelo meu trisavô e a sede atual, já na sétima geração de nossa família, foi projetada pelo meu bisavô e construída com braço escravo. Minha mãe era uma pessoa muito boa e generosa, e dela recebi todo o amor possível. Essas primeiras experiências foram fundamentais para mim e marcaram para sempre a minha vida.

HELENA FURTADO: Uma das suas paixões é a música clássica: Beethoven, Mozart, Bach, Shubert, Chopin, Mahler, Rachmaninoff, Stravinski e outros. O Sr.  gostaria de contar como se dá esse encontro?

DR. JUNQUEIRA: Minha relação com a música é muito antiga.  Aos 12 anos tomei contato com ela e ouvia muito no período da Semana Santa, em que as rádios, naquele tempo, só tocavam música clássica. Mas foi aos 15 anos, quando mudei para São Paulo para fazer o colegial, que me tornei frequentador assíduo da Discoteca Pública Municipal, onde mais profundamente, tomei contato com os compositores acima mencionados. Na adolescência passei por importantes e dolorosos problemas familiares e para não sucumbir agarrei-me à música, principalmente Beethoven, que me sustentou na travessia desse difícil período de minha vida. A música, talvez mesmo mais do que a psicanálise, tem sido um alimento para minha vida e um fator fundamental para meu desenvolvimento.

DRA. MARIA APARECIDA: André Green (1999), no livro “Um psicanalista engajado”, ressalta a importância da arte na vida do psicanalista e nos propõe que “é no acompanhar os movimentos de uma sessão analítica, com todas suas nuances, no suceder do desenvolvimento temporal” da mesma, “que a música (mais que a pintura), encontra a análise” (p.144). Dr. Junqueira, como profundo apreciador e conhecedor das artes, especialmente música e pintura, o que teria a nos dizer sobre a musicalidade do analista e sua relação com a prática clínica?

DR. JUNQUEIRA: Penso que a musicalidade na análise é um fator preponderante no vínculo analista–analisando. Da parte do analista, fornece-lhe  um instrumento, quando devidamente afinado, precioso para acompanhar as variações emocionais, as modulações que ocorrem na sessão, e um instrumento imprescindível para a aferição da validade das interpretações.

No que se refere ao analisando, serve para que ele possa captar não apenas o conteúdo formal da interpretação mas também o conteúdo emocional dela. Essa vai assinalar para ele a veracidade, sinceridade, e interesse humano do analista, fatores essenciais para o desenvolvimento de uma análise.

HELENA FURTADO: O Sr. teve o raro privilégio de vivenciar a mais íntima relação dentre as relações, a de analisando e analista, com o Dr. Bion. O Sr. gostaria de compartilhar conosco algum dos momentos memoráveis dessa dupla criativa?  Quando ocorreu o seu primeiro encontro com o Dr. Bion? Quais foram as suas primeiras impressões?

DR. JUNQUEIRA: A análise com Dr. Bion foi um ponto de virada em minha vida. O primeiro contato que tive com ele foi durante uma conferência sua na primeira vez que veio ao Brasil. Na ocasião ele falou de Milton e do Paraíso Perdido. Ouvindo-o pensei que ele poderia entender-me. Meu pai tinha uma belíssima edição desse livro ilustrado pelo grande artista  Doré. Lembro-me que, quando criança, eu gostava muito de folheá-lo passando os olhos por aquelas ilustrações que me fascinavam. Essas experiências estão relatadas no meu trabalho “Impressões de Minha Análise com Dr. Bion” (1980).

A análise com ele foi uma experiência extraordinária. Já na primeira semana as dúvidas que me levaram até ele haviam se dissipado. Entramos em um profundo e intenso trabalho, seis vezes por semana, já que minha análise com ele seria por tempo determinado. Convivemos em análise por um ano e meio e, por duas vezes, acompanhei-o em suas duas férias na Europa.

O que mais me impressionou em minha análise com Dr. Bion não foi o fato de ele ser um analista extraordinariamente genial, mas sim a pessoa profundamente bondosa e generosa que soube me acolher. Foi isso o fator determinante para o sucesso de minha análise. Durante ela esquecia-me de que ele era um gênio e passei a me relacionar com o ser humano profundamente bondoso que ele era.

Outra coisa interessante que demonstra sua intensa sensibilidade é que ele analisava as poesias que apareciam em minhas associações. Eu sempre gostei muito de poesia e, muitas delas, eu sei de cor. Em minha primeira semana de análise lembrei-me do livro de Castro Alves, “Espumas Flutuantes”, particularmente a poesia que aparece no seu frontispício. Tentei traduzi-la para o inglês, mas ele pediu-me que falasse em português. Estranhei o pedido, pois sabia que ele não falava nossa língua. Depois de recitá-la, fiquei estupefato, pois sua inteRpretação correspondia a alguém que entendia português. Minha interpretação para tudo isto é que ele pode captar o seu sentido pela musicalidade de seus versos.

DRA. MARIA APARECIDA: Em um processo analítico descobrimos, fortalecemos e expandimos algumas características de nossa personalidade. Dr. Junqueira, sua inteligência, sensibilidade, espirituosidade, generosidade, criatividade, seu acolhimento afetivo, respeito à percepção, à verdade, ao livre pensar, são notadamente qualidades de sua personalidade que comparecem na situação analítica, supervisão, coordenação de seminários e nas relações de amizade. Além disso, sua valiosa produção científica é reconhecida e citada por psicanalistas brasileiros e estrangeiros. A pergunta é: que características e capacidades pessoais se fortaleceram e se tornaram ainda mais preciosas para sua vida a partir de sua fecunda relação analítica com Dr. Bion?

DR. JUNQUEIRA: Como já relatei no meu trabalho “Impressões de Minha Análise com Dr. Bion” (1980), quando fui para Los Angeles eu estava com dúvidas quanto a ser analista. Penso que não levou um mês de trabalho com Dr. Bion para que essas dúvidas se dissipassem e para que voltasse a confiança que tinha em mim e em minha decisão de ser psicanalista. A partir daí eu pude trabalhar com Dr. Bion toda a minha sensibilidade ligada à arte, principalmente música e poesia, o que nunca fora possível antes. Com isso os fundamentos de minha personalidade tornaram-se mais disponíveis para mim, voltando eu a ser a pessoa alegre e confiante no futuro que sempre fora.

Olhando em retrospectiva considero a experiência com Dr. Bion uma das mais extraordinárias de minha vida, e sobre aquela alma sábia e generosa, penso dever tanto quanto devo a minha mãe.

HELENA FURTADO: O acaso é um grande “ator” na vida de cada um de nós. O Sr. tem lembrança de em alguma oportunidade o acaso ter contribuído com a sua realização na psicanálise?

DR. JUNQUEIRA: A primeira vez que ouvi falar de Freud e psicanálise foi quando eu estava estudando com duas colegas de classe no primeiro ano do curso de medicina. Uma delas nos contou que sua mãe estava lendo Freud e comentou com ela sobre o Complexo de Édipo, em que o filho se apaixona pela mãe. Aquilo, embora estranho, calou-se em mim. Outra experiência, ainda naquela época, foi a leitura do livro “Psiquiatria e Psicanálise” do Dr. Darcy Mendonça Uchoa, catedrático de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina e Analista Didata da Sociedade de São Paulo. Isto me fez, desde o terceiro ano do curso médico, em 1957, frequentar o hospital psiquiátrico que havia em Uberaba. A leitura deste livro juntamente com a experiência acima relatada, sobre o Complexo de Édipo, foram os fatores determinantes para decidir-me, primeiramente pela psiquiatria, e depois, quando já ganhava o suficiente, pela minha formação psicanalítica.

HELENA FURTADO: Psicanálise e Literatura, desde as origens da primeira, costumam ser parceiras; entre as obras de literatura que o inspiraram quais são as mais significativas vistas do vértice psicanalítico?

DR. JUNQUEIRA: Sem dúvida nenhuma foi a obra de Shakespeare. Dr. Bion era um profundo admirador dele, e muitas vezes em análise declamou passagens de sua obra.

Depois eu diria Milton com seu “Paraíso Perdido” e outros clássicos, principalmente Camões com seus sonetos. Também Dante, Dostoievsky, Tolstoi.

DRA. MARIA APARECIDA: Harold Bloom, professor de literatura, ensaísta e estudioso das grandes obras da Cultura e literatura ocidentais, no livro “O Cânone Ocidental”, de 1994, analisa obras de escritores ocidentais, dentre eles Shakespeare e Freud, e as classifica de canônicas, por serem imprescindíveis para a formação cultural do homem. Destaca Shakespeare como cânone não apenas ocidental, mas universal e diz que “Shakespeare foi o inventor da Psicanálise e Freud apenas seu codificador” (p.361). Dr. Junqueira, na década de 80, quando iniciávamos a formação analítica, o Sr já dizia que deveríamos ler, antes de tudo, Shakespeare. Então, gostaria que o Sr comentasse a citada afirmação de Bloom.

DR. JUNQUEIRA: Meu pai, que era poeta, tinha uma maneira sui generis de nos castigar, dava poesias para decorarmos. Eu, ao invés de odiar os poetas, aprendi desde muito cedo a amá-los. Lembro-me que eu tinha aproximadamente 12 anos quando li a trilogia “Hamlet”, “Macbeth” e “Romeu e Julieta”, em um livro de papai que conservo comigo até hoje. Assim, muito jovem aproximei-me da música e da poesia que tiveram, e ainda têm, uma influência fundamental em minha vida. Posso afirmar mesmo que elas tiveram um papel fundante para que eu me tornasse psicanalista.

Mas foi com a experiência com o Dr. Bion que vim a compreender profundamente o que intuitivamente já descobrira antes: a importância da arte, principalmente Shakespeare, para o entendimento da psicanálise, principalmente para a expansão e desenvolvimento da sensibilidade.

Como não poderia deixar de ser, Dr. Bion era um profundo admirador e conhecedor da obra de Shakespeare. Captava de uma maneira admirável configurações mentais minhas que se relacionavam à obra de Shakespeare, quando então, de uma maneira extremamente bela e profunda, citava de cor trechos de sua obra.

HELENA FURTADO: O Sr. produziu uma obra muito importante sobre a Família Junqueira. O Sr. gostaria de falar sobre esse trabalho hercúleo?

DR. JUNQUEIRA:  Realmente foi um trabalho hercúleo que me custou 15 anos de pesquisa histórica e genealógica. São cinco volumes com mais de 2.000 páginas. Alí eu traço a saga da Família Junqueira que, juntamente com outras mais, foram um fator muito importante para a colonização do Sul de Minas e Noroeste de São Paulo. Desde a busca do ouro, o cultivo do café, a criação de gado e, finalmente, o cultivo da cana. Dada a importância da pesquisa histórica ele foi aprovado e editado sob a égide da Lei Roanet.

HELENA FURTADO: Qual o legado de vida que o Sr. pretende deixar aos seus filhos?

DR. JUNQUEIRA: Eu sempre pautei a minha vida pela importância da busca da verdade – o resto é consequência dela. Se eu consegui, e vier conseguir, passar para eles o respeito fundamental à verdade, considerarei que viver valeu a pena.

DRA. MARIA APARECIDA: Ogden (2010), no capítulo 2 do livro “Esta arte da Psicanálise – sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos”, nos diz não abrir mão de sua humanidade na relação com seus pacientes. Dr. Junqueira, parafraseando Ogden, do que o Sr. não abriria mão na relação com seus analisandos?

DR. JUNQUEIRA: Concordo inteiramente com Ogden. A qualidade humana do analista, que o leva a se interessar genuinamente por seu analisando é condição intrínseca à sua função. Não sentiria nenhum entusiasmo por um candidato que não gostasse de gente.

Lembro-me de uma avaliação para ingresso no Instituto em que o candidato dizia que queria ser analista para ficar rico. Disse-me que se fosse aceito no Instituto queria fazer análise didática comigo. Ao final da entrevista afirmei a ele que não só o recusava como analisando e como candidato, e expliquei porque. Veja o perigo em se tomar para análise um candidato com essa disposição.

DR. PAULO RIBEIRO: O Sr. conviveu com o Dr. Bion no período final da elaboração da sua obra, uma vez que ele produziu intensamente até o desfecho de sua vida. Nos últimos anos de publicações científicas, o Dr. Bion estava envolvido na pesquisa de questões muito primitivas da mente, a protomente (ou mente primordial). No seu trabalho em parceria com o Dr. João Braga, os Srs. enfocaram a “consciência moral primitiva”, um precioso conceito desta época. Gostaría que o Sr. falasse um pouco daquela época da vida e da obra de Bion. No contato pessoal e analítico com ele era possível perceber sinais da pesquisa sobre a protomente?

DR. JUNQUEIRA: Como é possível depreender através de suas supervisões que são mensalmente distribuídas e comentadas, Dr. Bion raramente refere-se a teorias ou usa termos teóricos em suas expressões. Entretanto, no contato diário com ele, por dedução e meios indiretos, percebia-se seu interesse em aspectos primitivos da mente. Lembro-me muito bem de dois momentos que estão relatados em: “Impressões de Minha Análise com
Dr. Bion” (1980), quando entendi que havíamos trabalhado na análise vivências primitivas relacionadas à caesura do nascimento. Nesse meu trabalho começo citando Freud:

“Existe muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primitiva infância do que a impressiva caesura do ato de nascer nos permite acreditar”. (Freud, 1925-1926; Bion, 1977).

Em seguida descrevo o que ocorreu naquele dia de minha análise: “Ainda durante minha primeira estada em Los Angeles, no restaurante do hotel onde me hospedava, os pratos – os mais baratos – eram numerados de 1 a 3. Certa manhã, ao pedir o “breakfast”, disse: “I want the second”. A garçonete não entendeu o que eu disse, peguei o menu e apontei para o prato pretendido. Aí, ela teve um gesto e uma expressão de surpresa e exclamou: “Ah! number two?!!”, ao que repliquei: “Yes, the second”.

Este era mais um dos meus desagradáveis tropeços com o inglês americano, de que aquela fase foi prenhe.

Ao sair dali em direção à análise, pelo caminho, meditava sobre as dificuldades que estava tendo em comunicar-me. Como pensava eu dominar esta língua? Será que agora terei de falar só de um jeito – o jeito deles – por que senão não entendem?

Ao me deitar no divã, ainda angustiado e deprimido, contei a Dr. Bion o episódio acima descrito, e disse-lhe que eu me sentia como que colocado no “Leito de Procusto”, a satisfazer as imposições de uma língua e de uma cultura que me manietavam. E que, ao expressar-me em inglês, sentia como se estivesse aleijado, roubado na capacidade de me comunicar… Sentia como se tivesse que aprender tudo de novo… Dr. Bion interpretou aproximadamente o seguinte: “O senhor sente que não está sendo fácil adaptar-se à América… O senhor saiu do Brasil, lá deixou sua família, seu trabalho, seus amigos… Deixou também sua língua, seus alimentos, seus costumes… Esta mudança, esta ruptura abrupta faz o senhor se sentir aleijado, roubado… e, sentindo que tem de aprender tudo de novo… Veja o preço que o senhor está pagando para aprender… Há, porém conhecimento, aprendizado sem dor?” E prosseguiu: “Houve um tempo em que o senhor também não sabia falar e apontava para o que queria… O senhor tinha vontade e não sabia como colocá-la em palavras… Poderíamos dizer que o senhor agora está nascendo para um novo mundo… Eu penso, porém, que esta experiência tem uma história mais antiga, não começou agora. Ela revive para o senhor o seu nascimento… Em que o senhor deve ter se sentido, como agora, aleijado e roubado, ou mutilado e castrado. O primeiro Leito de Procusto em que o senhor esteve foi ao nascer”.

De outra feita, conversando a respeito de Música – que está entre as coisas de que eu mais gosto – contei a Dr. Bion uma história que mamãe dizia com freqüência, principalmente quando ela me observava ouvindo música. Contava que quando nos últimos meses de gravidez, ela entrava em um local onde estava tocando algo, eu começava a mexer no seu ventre. Isto se tornou tão freqüente e curioso, para ela, que imaginava que eu seria músico. Dr. Bion disse: “Se pudermos confiar na percepção de sua mãe, sua capacidade para gostar de música nasceu antes do senhor”.

DR. PAULO RIBEIRO: Ainda pensando nos tempos finais da produção de Bion, acreditamos que ele fez uso de conjeturas imaginativas para conceituar os elementos assimbólicos da experiência humana pré-natal (processos em que mente e corpo não se encontram diferenciados), assim como Freud o fez ao iniciar a nossa ciência. O uso de conjeturas imaginativas coloca esses conceitos de Bion (como o “terror talâmico” ou “terror sub-talâmico”, entre outros) numa fronteira semelhante à de Freud no início da psicanálise, portanto, numa fronteira para o futuro. Com toda a sua vasta experiência na psicanálise, o que o Sr. vislumbra para o futuro da psicanálise?

DR. JUNQUEIRA: Eu penso que as hipóteses e os trabalhos finais de Dr. Bion sobre a protomente e a consciência moral primitiva representam, ainda hoje, o futuro da psicanálise, e necessitam ser expandidos, possivelmente com a ajuda de outros ramos da ciência.

O que sempre me fascinou na psicanálise foi o seu comprometimento e a sua busca fundamental e incessante pela verdade. Na medida em que nós psicanalistas pudermos nos ater a ela, nosso universo estará sempre em expansão, pois para cada verdade palmilhada outras tantas se desdobrarão à nossa frente. Assim, o futuro da psicanálise depende de nosso amor e reverência a ela.

DR. JOÃO BRAGA: As análises em sessões condensadas mudaram a distribuição geográfica de psicanalistas no Brasil. O Sr. foi quem liderou o movimento para o reconhecimento de sua validade para formação analítica.  Poderia comentar a respeito desta contribuição que fez à psicanálise no Brasil?

DR. JUNQUEIRA: Após a minha aprovação como candidato em 1969 para o Instituto de Psicanálise da Sociedade de São Paulo, procurei a Profa. Virgínia Bicudo, secretária do mesmo. Expliquei-lhe que morava em Marília-SP, e precisaria que houvesse um arranjo nos horários que me possibilitasse frequentar os cursos teóricos. Disse-me ela que teríamos de fazer o mesmo que se fazia em Londres para atender os analistas que moravam no Continente. Ou seja, concentrar as sessões em duas vezes por semana.

A partir daí os cursos teóricos do Instituto de São Paulo passaram a ser às 2as e 3as feiras e continuam até hoje.

Tudo corria normalmente até que há cerca de 40 anos atrás o presidente da IPA, na ocasião, Joseph Sandler, em visita de trabalho no Brasil, inteirou-se das análises concentradas. Como desconhecesse a sua existência, duvidou da sua validade e disse que levaria o assunto à consideração da direção da IPA. Todos ficamos muito preocupados, pois a essa altura mais de uma centena de pessoas já haviam sido assim analisadas.

A grande dificuldade para discutir sua validade era que não existia nenhum trabalho escrito sobre o tema. Visto isto, decidi-me por relatar minha experiência em “Análise Concentrada – Três Décadas de Experiência”. A sua publicação durante o Congresso Internacional de São Francisco teve um papel muito importante na validação pela IPA das análises concentradas.

A essência do trabalho chama atenção de que não existe, fundamentalmente, diferença entre uma e outra modalidade de análise.

DR. JOÃO BRAGA: Com o tempo (mais de quarenta anos?) e a intensa participação que o Sr.  teve em diversas fases do movimento psicanalítico no Brasil, que visão o Sr. tem da maneira com que a psicanálise está institucionalizada entre nós?

DR. JUNQUEIRA: Se olharmos para os aspectos externos constatamos que a psicanálise está amplamente institucionalizada no Brasil e não para de expandir-se. Quando ingressei no Instituto de Psicanálise de São Paulo em 1969, havia só 6 didatas e cerca de 60 membros. Hoje são 185 membros efetivos incluindo-se 79 didatas, 275 membros associados e 338 membros filiados.  Eu, porém não me deixo impressionar por tais números, pois o que realmente é importante é como a psicanálise está institucionalizada dentro de cada um de nós. Lembro-me da afirmação de Freud que duas coisas caracterizavam a essência da psicanálise: a existência do inconsciente e a transferência.  Com estas duas premissas básicas em mente, e mais, diante de nosso paciente há todo um desconhecido e um universo a serem pesquisados. Se consideramos ainda o que nos aconselha Bion, ou seja, ter fé numa realidade última a ser descoberta, estaremos com os nossos instrumentos internos afinados. Assim teremos uma psicanálise em que os seus fundamentos partem de premissas internas embasadas na verdade para só depois partir para constituir instituições sólidas e duradouras.

HELENA FURTADO: O Sr. poderia dizer algumas palavras para os Membros Filiados ainda estão em formação?

DR. JUNQUEIRA: Se eu pudesse dar alguma sugestão: aconselharia lerem a obra de Shakespeare e poesias em geral. Já falei da importância da música para mim. Ela sem dúvida nenhuma contribuiu e contribui para o incremento da minha sensibilidade. A sensibilidade e a capacidade de estar ali disponível para o seu analisando, penso ser um dos fatores mais importantes do que o conhecimento teórico. Por outro lado não concebo um analista que não goste de pessoas.

HELENA FURTADO: Após a formação psicanalítica oficial, o que o Sr. mudaria na relevância do consagrado tripé da análise, seminários teóricos e clínicos e supervisão em uma possível formação continuada não oficial?

DR. JUNQUEIRA: Eu nunca vi uma profissão que exija mais estudo continuado  do que a psicanálise, que não para nunca. Penso também que uma re-análise, depois da formação é um fator de desenvolvimento importante.

DRA. MARIA APARECIDA: O Sr. foi um dos idealizadores e fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto e de seu Instituto de Psicanálise. Coordenou seminários teóricos e clínicos durante muitos anos, elaborou e se responsabilizou pelo programa teórico dos seminários de Bion. Além disso, lutou pelas análises condensadas, o que possibilitou a muitos a formação analítica. Somos imensamente gratos por esta herança. Hoje, quando o Sr. olha para este Instituto e esta Sociedade, acredita que valeu a pena sua grande luta por esta conquista, suas dores e alegrias vividas para que este importante projeto se tornasse realidade e se mantivesse vitalizado? Que recomendações o Sr. faria aos que se dedicam a cuidar deste precioso legado, sejam eles os membros filiados, associados, efetivos ou didatas?

DR. JUNQUEIRA: O projeto de fundação de uma sociedade de psicanálise em Ribeirão Preto foi um ao qual dediquei preciosas horas de meu tempo. Finalmente, com o esforço prestimoso de outros colegas, conseguimos organizar um Grupo de Estudos e esta foi a célula inicial de nossa Sociedade. O tempo se passou, nossa sociedade se expandiu e se tornou o portento que é hoje, motivo de orgulho para todos nós.

Alguém me perguntou certa vez o que eu achava do futuro da psicanálise face ao desenvolvimento da neurociência e da psicofarmacologia. Respondi que o desenvolvimento em psicanálise depende da relação dinâmica analista-analisando e que desta interação emerge a verdade que irá libertar o paciente. Nada mais nada menos do que a máxima Socrática: “Conheça a ti mesmo”; ou as palavras de Cristo: “Conheça a Verdade e ela o tornará livre”. Sendo assim, penso que nenhum psicofármaco tem a possibilidade de lidar com a verdade intrínseca a cada um de nós. No entanto, nos casos de psicoses, pode haver uma colaboração mútua entre os psicotrópicos e a psicanálise.

Então, que posso eu recomendar para tantos jovens que abraçam entusiasticamente a psicanálise? Mantenham-se fieis à sua verdade e a seus corações, e nunca façam concessões que não estejam preparados para fazê-las.

HELENA FURTADO: Dr. Junqueira, quero agradecer-lhe, em nome dos entrevistadores, a sua generosa e sincera disponibilidade durante este trabalho. As suas vivências, o seu conhecimento, a sua experiência, transmitidos em sua obra, serão sempre de grande valia para nós. Muito obrigada!

[1] Entrevista realizada por Helena Lucia Alves de Lima Furtado (SBPRP) em Abril de 2014, na casa do psicanalista Dr. José Américo Junqueira de Mattos (SBPRP/SBPSP), compilando questões formuladas pela mesma e pelos psicanalistas Joao Calos Braga (SBPSP/GPC), Maria Aparecida Sidericoudes Polacchini (SBPRP/SBPSP) e Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro (SBPRP/SBPSP).