por Dr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP
Como se estabelece a identidade sexual de uma pessoa?
Somo definidos por nossa carga genética? A criação e a história de vida influenciam? De quê forma? E por que esse tema tornou-se mais presente nos últimos tempos?
O debate em torno das questões de gênero vem ganhando uma visibilidade crescente nas últimas décadas. Após muitos anos de invisibilidade social, grupos variados decidiram se unir em movimentos de grandes proporções, como as Paradas Gays ao redor do mundo. Dez anos atrás, a Parada Gay de São Paulo reuniu 3,5 milhões de pessoas na Avenida Paulista. Com tamanha multidão nas ruas, já não era possível ignorar a relevância (e a existência) dos debates sobre gênero e sexualidade. Eventos como aquele colocaram os temas relacionados ao gênero na ordem do dia. Gradualmente, identidade sexual, homofobia, violência sexual contra as mulheres e minorias sexuais, patologização dos comportamentos sexuais, dentre outros assuntos correlacionados, passaram a ser debatidos em revistas, jornais e novelas.
O conceito de gênero desempenhou (e segue desempenhando) um papel fundamental nesse processo. Porém, a definição do conceito de gênero não é algo recente. No início, esse debate, do qual assistimos atualmente as conseqüências e desdobramentos, relacionava-se à outra busca por direitos e visibilidade das mulheres.
De que forma?
Em seu trabalho clássico – “O Segundo Sexo” – publicado originalmente em 1949, Simone de Beauvoir apresentava uma visão a respeito de feminilidade que segue sendo polêmica e fundante para os movimentos feministas ao redor do mundo. Dizia ela:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam o feminino” (2009, pág. 361)
“O Segundo Sexo” é um clássico do campo, um livro que abriu espaço para que pudéssemos conhecer a história da construção da imagem da mulher como “naturalmente” sensível, maternal, frágil, etc. Descrever essa construção foi o que permitiu ao movimento feminista questioná-la e desconstruí-la. Se a imagem que temos do feminino é apenas uma, dentre inúmeras construções possíveis, quais outras possibilidades haveriam? Que outras formas de ser mulher seriam possíveis? Imagine, caro leitor, o que era apresentar uma questão como essa no final da década de quarenta. O livro desconstruía o que, até então, se pensava ser a essência do feminino. Não surpreende que tenha sido (e siga sendo) um trabalho que desperta paixões e ódios.

Em um trabalho mais recente, Jean Laplanche, conhecido psicanalista francês, abordou esse debate a partir de um vértice psicanalítico em um livro chamado: “Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano” (2000-2006). Laplanche considera, por exemplo, que o conceito de gênero já estaria presente em Freud, mesmo que de forma embrionária. É uma tese polêmica e interessante.
Concordo com Laplanche. Em uma de suas conferências, dedicada especificamente ao tema “Feminilidade”, Freud já afirmava que:
De acordo com sua natureza peculiar, a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher – seria esta uma tarefa difícil de cumprir -, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma, como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual (FREUD, 1932/33, pág. 144).
Em outras palavras, não caberia à Psicanálise descrever uma feminilidade universal (essencial e única), mas acompanhar e descrever o processo de construção e desenvolvimento das mulheres, indagando-se sobre ele e sobre suas múltiplas possibilidades. No mesmo texto, Freud referia-se às mulheres de formas muito variadas, ora com um olhar que (hoje) poderíamos chamar de machista, ora com uma sensibilidade e abertura supreendentemente revolucionárias. Como dizia Foucault, o autor inevitavelmente escreve a partir das condições de seu tempo e a Psicanálise nasceu em tempos de machismo e patriarcalismo preponderantes.
Por tudo isso, escolhi “O Segundo Sexo” de Beauvoir e a Conferência sobre a “Feminilidade” de Freud como as minhas dicas. Conhecer as origens de um debate, suas idas e vindas, contradições, avanços, recuos e tensões, me ajuda a pensar. Lê-los permite entrar em contato com uma temática que ganhou outros contornos e ramificações, mas que começou com a genialidade de autores, como Beauvoir e Freud (dentre outros), se questionando a respeito do que seria o essencial e o construído na imagem que tínhamos a respeito das mulheres.
Finalmente, para uma visão mais recente a respeito da visão psicanalítica sobre gênero e sexualidade, recomendo a leitura do já citado “Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006” de Jean Laplanche. Nele, Laplanche aborda (com a qualidade que lhe é peculiar) essas e outras questões sob outra ótica, afinado com os avanços da psicanálise, do campo construcionista e da biologia. É um trabalho magistral. Boas leituras!
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Bibliografia:
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2009.
FREUD, S. Feminilidade. Conferência XXXIII(1932-33). In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1980, vol.XXII.
LAPLANCHE, J. O gênero, o sexo e o Sexual. In: Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006. Porto Alegre, Dublinense, 2015.
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