por Ana Rita Nuti Pontes, membro efetivo com funções didáticas da SBPRP
Vivemos tempos em que os códigos culturais estão mudando, os ideais sexuais de nossa época estão em plena transformação, e nos últimos meses, especificamente aqui no nosso país, temos visto manifestações significativas em relação às mostras de arte que têm como temática a sexualidade.

A exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira do Banco Santander, e a tradicional mostra bienal do MAM, em que um artista nu fez uma performance, colocando-se no lugar de um “bicho”, causaram manifestações carregadas de indignação, ódio e revolta. Recentemente foi aberta no MASP em São Paulo uma exposição, Histórias da Sexualidade (de 20 de outubro de 2017 a 14 de fevereiro de 2018) porém, depois de tanta polêmica sobre o direito de expressão e a liberdade individual, o próprio MASP decidiu classificar em 18 anos a censura para apreciação desta mostra.
Por outro lado, tenho visto nos jornais que a novela das 21 horas da Globo (que acabou de ser exibida) alcançou altíssimos níveis de audiência porque a autora, Gloria Perez, que, como sempre coloca na telinha muitos conflitos vividos na atualidade, desta vez traz um personagem que é um transgênero, o que despertou um grande interesse nas pessoas e quebra de preconceito.
A propósito de toda polêmica sobre a “cura gay”, vi publicada em muitos lugares da mídia uma carta que Freud escreveu em 1935 para a mãe de um rapaz que era homossexual. Uma carta bonita e esclarecedora em que Freud coloca claramente que homossexualidade não pode ser qualificada como doença e que “não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício, nem degradação alguma”. Ele chama de injustiça e crueldade considerar a orientação sexual como delito, e cita grandes nomes da história que eram homossexuais, como Platão, Michelangelo e Leonardo Da Vinci. Na antiga Grécia, a homossexualidade era considerada uma prática natural entre os homens, e Safo, na ilha de Lesbos, tirou algumas mulheres da ignorância, proporcionando-lhes cultura e conhecimento através do amor homossexual.
Se nosso referencial de pensamento é o psicanalítico, está implícito o inconsciente e a pulsão sexual. Em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), quando Freud faz alusão à perversão polimorfa da criança, aponta que a satisfação advém das múltiplas zonas erógenas do corpo. Ele postula que o prazer sexual também está ligado a certas fixações relacionadas às fases da sexualidade infantil, que permanecem registradas no psiquismo e contribuem para a conformação da sexualidade genital de cada um na vida adulta.
Hebert Marcuse, em “Eros e Civilização” (1972), faz uma importante análise mostrando que Freud realçou repetidamente que as duradouras relações interpessoais de que a civilização depende pressupõem que o instinto sexual é inibido em seus fins. O amor, e as relações duradouras e responsáveis que ele exige, baseia-se numa união de sexualidade com o “afeto”, e essa união é o resultado histórico de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação legítima do instinto se torna suprema e suas partes componentes são sustadas em seu desenvolvimento. Portanto, esta domesticação dos instintos é também necessária para a humanização do homem e o desenvolvimento da civilização.
Mas, e o que esperar dos tempos líquidos que nos fala Bauman? Este sábio sociólogo moderno, ao falar exclusivamente sobre sexualidade e os relacionamentos sexuais na pós-modernidade aponta que o sexo tem papel fundamental da construção da cultura e chama a atenção do leitor para a fluidez e a liquidez dos relacionamentos pós-moderno, mencionando as dificuldades do relacionar-se e das frustrações da falta de intimidade.
Os caminhos da modernidade têm mudado o cenário que conhecíamos de maneira assustadora, e têm trazido consequências duras para o relacionamento afetivo e também subjetivo das pessoas. No início de século passado, ao nascer, o sujeito encontrava uma sociedade pronta, baseada em seus costumes e tradições e via um caminho pronto a percorrer o que de certa forma lhe dava uma identidade. Bem diferente de hoje, onde tudo é impermanente, que valores antes sólidos e inquestionáveis são modificados a todo o momento. E observamos com certa perplexidade um movimento em curso onde a fronteira entre o masculino e o feminino fica cada vez mais esfumaçada, sem um contorno definido. Questões para serem observadas e pensadas por nós.
Na Folha Ilustrada de sábado dia 21 de outubro de 2017, Elizabeth Roudinesco dá uma entrevista a propósito do lançamento de seu Dicionário Amoroso da Psicanálise (ainda não traduzido para o português) e diz acreditar que as famílias não vão acabar, que o divórcio não acabou com as famílias e que, se os homossexuais querem fazer uma família, é porque esta é desejável. Ela também afirma que para Lacan o amor é narcísico porque procuramos no outro a nossa própria imagem, que todos somos mais ou menos homossexuais.
Entre os primeiros artigos de Freud, o escrito de Marcuse, o pensamento de Bauman e a entrevista de Roudinesco passaram-se muitos anos. E o que observamos é que, sim, as relações duradouras de que a civilização depende pressupõem uma inibição dos instintos sexuais, mas aconteceu um grande alargamento destas águas. E neste ponto penso que a psicanálise tem um papel fundamental, no sentido de ajudar o ser humano a ser ele mesmo, autêntico e genuíno. A busca por uma existência calcada na liberdade do ser traz à tona todas as questões ligadas à diversidade sexual do ser humano. Este compromisso que a psicanálise tem com a ética do ser, do indivíduo enfrentar as dores do existir, é indubitavelmente libertador e necessário para que a pessoa se apossando da própria identidade se sinta viva e satisfeita sendo quem ela é.
Na nossa Sociedade, a SBPRP, atualmente acontece um grupo de estudos sobre “As múltiplas manifestações da sexualidade”, coordenado pelas colegas Guiomar Papa de Morais e Josimara Magro Fernandes, o que a meu ver demonstra que há um engajamento e reflexão dos colegas sobre o que vivemos atualmente e que concerne à sexualidade. Em contrapartida, acho interessante levarmos em conta também que, mesmo entre nós psicanalistas, todas estas questões sobre a sexualidade não constituem um pensamento unânime. A sexualidade é assim mesmo, inquietante e provocadora. Mas vai além disto: o modo como vivo a minha sexualidade e me identifico com ela me faz saber quem eu sou.
Manifestações de ódio, como as que vimos em relação às mostras culturais, fazem-me pensar que o ódio se dirige à nossa própria condição humana, ao nosso inconsciente, este grande senhor que não conhece as normatizações impostas pela sociedade e pelas religiões. Incomodamos-nos muito quando vemos fora de nós aspectos que não conseguimos integrar dentro da gente. As obras de arte, como por exemplo na exposição Queermuseu, provocam reações porque denunciam a nossa condição demasiadamente humana, portadora de um “perverso polimorfo” dentro de si. Ódio de sermos humanos e ódio de quem nos denuncia e nos desnuda, ódio de nos vermos retratados numa obra de arte. É destas mutilações do ser que a psicanálise tenta cuidar para criar condições para um viver mais genuíno, sem tanto medo de sermos aquilo que somos.
14 de novembro de 2017 at 16:04
Um tema muito amplo que foi abordado de forma profunda e esclarecedora pela psicanalista
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