A Psicanálise está presente em um grande número de países. Em cada um deles, tem sido repensada (e sonhada), desenvolvida e, eventualmente, adaptada à realidade local.

No ano passado, tive a oportunidade de conversar brevemente com o Dr. Kenichiro Okano, analista e membro do Comitê Executivo da Sociedade Japonesa de Psicanálise. O Dr. Okano teve a experiência de trabalhar e estudar nos Estados Unidos antes de retornar à Tóquio, onde atua e ensina.

Antes desse contato, decidi ler um pouco sobre a Psicanálise japonesa, suas origens e desenvolvimento, suas dificuldades, os autores de referência, bem como sobre alguns conceitos criados por autores locais que me pareceram interessantes.

Uma breve introdução histórica talvez seja útil para aqueles que, como eu, desconhecem a psicanálise japonesa.

O primeiro grande livro de introdução à Psicanálise publicado no Japão data de 1917. Yoshihide Kubo, professor universitário de psicologia foi o seu autor, após uma temporada de estudos na Universidade Clark de Worcester, onde Stanley Hall havia recebido Freud para conferências alguns anos antes.

Em 1928, Kenji Otsuki criou em Tóquio o primeiro Instituto Japonês ligado à IPA. A psicanálise já se desenvolvia no país quando Kiyoyasu Marui reuniu, em Sendai, um círculo de jovens psiquiatras  dispostos a estudar Psicanálise, dentre eles estava Heisaku Kosawa, que viria a se analisar com Freud e, posteriormente, com Richard Sterba.

Ele se tornaria um dos principais pensadores da Psicanálise japonesa. Descreveria, por exemplo, o complexo de Ajase, uma versão oriental do complexo de Édipo.

Ao escrever sobre Ajase, Kosawa ponderou sobre a dependência culpada do homem japonês(amae) em relação à mãe. O superego japonês estaria relacionado à consciência do vínculo e com a culpa em relação à ela, como veremos adiante.

Imagem: Reprodução

Na entrevista que se segue, abordaremos alguns desses temas, entremeando nosso diálogo com trechos e alguns comentários sobre aspectos específicos e originais da psicanálise japonesa.

Desejo a todos(as) uma ótima leitura.

Luiz Toledo: Como o seu interesse pela psicanálise surgiu? Como foi sua jornada para se tornar um analista?  

Dr. Okano: Surgiu por pensar que seria maravilhoso “analisar” e explorar a mente das pessoas, sem saber exatamente o que a psicanálise “a la Freud” significava.

Luiz Toledo: Você viveu a experiência de trabalhar nos Estados Unidos e atualmente reside e trabalha no Japão. O que pode nos contar sobre as diferenças e especificidades de trabalho em ambos os países? O que você pode nos dizer sobre – como você disse em um artigo anterior – ser um analista bicultural?  

Dr. Okano: Não há muita diferença, em meu ponto de vista, uma vez que temos um paciente deitado no divã como analisando. Os pacientes são, inicialmente, sempre hesitantes, então gradualmente tornam-se mais abertos para expressar sua mente. No entanto, se existe uma distância de antecedentes culturais entre o analista e analisando, isso sim faz uma grande diferença.

“Durante a minha longa estada nos Estados Unidos, tive muitas chances de ver membros de famílias americanas se abraçando e se beijando nos lobbies do aeroporto quando eles se reuniam. Alguns dos meus amigos americanos ficavam intrigados em ver membros das famílias japonesas mostrando poucas emoções nessas situações”(1).

 “Nossa cultura japonesa é muitas vezes caracterizada pelo seu sigilo e não-expressão em vários contextos sociais. Tendemos a evitar a expressão direta de nossos sentimentos, bem como o confronto com os outros”(1).

Luiz Toledo: Em um de seus artigos (“O modelo comum para a formação da culpa na infância – o estudo comparativo do complexo de Édipo e Ajase”) você utiliza dois modelos diferentes para abordar o tema da culpa. O Complexo de Édipo é uma pedra angular da Psicanálise ocidental, o que você pode nos contar a respeito do Complexo Ajase?  

Dr. Okano: Gostaria de mencionar, nessa entrevista, que escrevi um manuscrito inédito. Nele, lido com esta questão que você propõe em detalhes. Para mim, em síntese, embora a história edipiana seja considerada a pedra angular da psicanálise, ele não aborda necessariamente as principais preocupações de nossa vida diária. Me preocupo mais, atualmente, com meninos sendo abusados e menos com meninos com sentimentos excessivamente erotizados em relação às mães.

“De acordo com Kosawa e seu sucessor Okonogi, há uma espécie de culpa na mente japonesa, que é bastante diferente da culpa baseada no medo do castigo representado pelo complexo de Édipo.

Ajase era filho de um rei na Índia. Sua mãe, temendo a perda de sua juventude e beleza, queria ter um filho para que pudesse manter seu status. Um profeta disse a ela que um eremita que morava na floresta renasceria como o filho do rei. A rainha, no entanto, queria que a criança nascesse o mais rápido possível e matou o eremita, que então entrou espiritualmente em seu ventre. A criança foi chamada Ajase. Pouco antes de ser morto, o eremita havia dito à rainha que ele renasceria como seu filho e amaldiçoaria seu pai. A rainha, com medo do que tinha feito, tentou abortar e matar o bebê, mas falhou e Ajase sobreviveu. Quando Ajase cresceu e aprendeu o segredo que cercou seu nascimento, ele se irritou com a rainha e tentou matá-la, sendo dissuadido desse ato por um ministro. Naquele momento, Ajase foi atacado por sentimentos de culpa e  abatido por uma terrível doença de pele, caracterizada por um odor tão repulsivo que ninguém ousava aproximar-se dele. Somente a mãe esteve ao seu lado e cuidou dele com amor. Apesar dos cuidados da mãe, Ajase não se recuperou prontamente. Procurando alívio, a rainha foi a Buda e falou-lhe de seus sofrimentos. Os ensinamentos do Buda curaram seu conflito interno e ela voltou para continuar cuidando de Ajase. Eventualmente, o Príncipe foi curado e tornou-se um governante respeitado. Esta é a versão da história de Ajase que Kosawa descreveu na década de 1950, com base no Kanmuryojukyo (Sutra da Contemplação da Vida Infinita).

A implicação desta história é que Ajase é a reencarnação do eremita que sua mãe havia matado. Ajase, portanto, odeia sua mãe por tê-lo matado antes do nascimento. No entanto,  sofria com fortes sentimentos de culpa depois de tentar matar a mãe e apenas o perdão (e a amamentação) dela o resgataram. Kosawa descreveu o sentimento de culpa que Ajase experimentou como “sentimento de culpa perdoada”, contrastando com “o sentimento de” culpa punitiva” que Freud descreveu em sua teoria do complexo de Édipo”(1).

Luiz Toledo: O que você pensa sobre o papel do perdão materno na gênese da culpa inconsciente descrita por Kosawa? A amae é uma especificidade oriental?  

Dr. Okano: Penso seriamente que um dos principais caminhos que levam à culpa é quando somos perdoados por alguém que – esperamos – esteja com raiva de nós por algum motivo. Você sabe, uma das razões pelas quais os japoneses se desculpam uns com os outros com freqüência é um desejo inconsciente: o de colocar o outro em uma situação de culpa.

“A amae, de acordo com Doi, é um tipo especial de dependência de outros que preserva a harmonia com eles. Não existe um termo ou noção equivalente no mundo ocidental. (…) amae tem raízes na infância quando o indivíduo depende de seus pais. É crucial que os pais permitam essa dependência e os pais também vivenciem a amae enquanto se entregam aos filhos. Essa mentalidade de amae é a base da emocionalidade que decorre do período pré-edípico e que persiste durante toda a vida”(1).

Luiz: Como é a demanda por análise em seu país? Considera que a psicanálise está bem estabelecida no Japão? 

Dr. Okano: De modo algum. Pergunto-me sobre o motivo. Acredito que o principal obstáculo seja a frequência. Muitas pessoas não podem considerar seriamente a terapia quatro vezes por semana. Muitos japoneses são curiosos sobre aconselhamento ou algum tipo de (como se chama por aqui) “terapia de conversa”, mas, assim que aprendem a freqüência de análise, eles recuam. Eu acredito que nosso esforço de divulgação ainda não é suficiente.

Luiz Toledo: Takeo Doi fez algumas considerações sobre as diferenças (e dificuldades) de estabelecer a Psicanálise no Japão. Takeo parece considerar que o fato de ser uma sociedade de tradição budista e xintoísta, ao contrário da civilização judaica cristã (berço da psicanálise), pode ser um aspecto relevante a ser considerado. O que você pensa a respeito?  

Dr. Okano: Como a maioria dos japoneses hoje em dia são ateus ou não-religiosos, e os pensamentos de Freud não são adaptados para os cristãos, não considero que haja uma grande diferença. No entanto, percebo que a mente japonesa parece aceitar as idéias de Kohut com mais facilidade do que as de Freud. Atualmente, o que posso dizer é que os kleinianos são mais poderosos na comunidade psicanalítica japonesa.

Luiz Toledo: Agradeço imensamente pela entrevista e pela oportunidade de ouvir um pouco a respeito da Psicanálise japonesa. 

Artigos e sites de referência:

(1)http://www.ipa.world/en/en/news_and_events/Taipei_2017/Web_Content/Congress_Papers/MAINLECTURE2.aspx

The Anatomy of Dependence in The key analysis of japanese behaviour (Doi, 1971).

Okano, K. My path toward becoming a bicultural analyst: An Autobiographical Sketch in:

(https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/07351690.2015.1123996).

Okano, K. O modelo comum para a formação da culpa na infância – o estudo comparativo do complexo de Édipo e Ajase”.

Roudinesco & Plon, Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

Entrevista realizada por Dr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP