por Lídia Neves Campanelli, membro associado da SBPRP

Este texto contém algumas observações sobre a leitura de “Meias verdades: um romance”, de T. H. Ogden. É inevitável encontrar o analista no escritor, explicitamente, nas frestas, ou ainda, mais profundamente, nas entrelinhas do texto. Para o leitor que não tem proximidade com a Psicanálise, a leitura pode trazer inquietação e perplexidade diante das dolorosas emoções, dos estados de inconsciência e consciência da mente humana que se apresentam durante toda a história.

Um primeiro olhar para o livro e minha atenção é capturada pela figura da capa e pela palavra romance. Céu escuro, antecipação de tempestade, cores que me remetem aos negativos das fotografias analógicas. Revelar um filme fotográfico envolve todo um procedimento delicado e cuidadoso, onde a presença da luz é pacientemente controlada. A luz vermelha é permitida, por seu comprimento de onda mais curto, mas somente ela. A presença da luz com comprimentos maiores de ondas pode comprometer todo o trabalho de revelação, distorcendo a imagem que surge do interior das sombras.

E agora, o romance. É este o gênero literário que Ogden atribui à sua obra. O que é considerado um romance na literatura? O romance é uma narrativa longa, que se origina das narrativas épicas, com personagens variados, e que se organiza a partir de uma trama que pode ser fictícia apenas ou combinada com a realidade.

Construo, então, um ponto de partida para a leitura do livro, um lugar sombrio e escuro, uma narrativa entre a ficção e a realidade, e um processo delicado de revelação que se desdobra em uma quase ausência de luz. Seria este o modelo do estado de mente que Ogden propõe como pano de fundo para conhecer as verdades de seus personagens? Estaria falando do conhecer como o processo desafiador de mergulhar nas trevas para ver o invisível, transcendendo a familiaridade das regiões iluminadas?

Penso que o autor sugere coordenadas de espaço e tempo com a função de nos localizar na realidade concreta, mas estas referências são cambiantes e é a realidade psíquica que toma quase toda a trama da história. O romance tem início em uma estrada que conduz o leitor para uma fazenda no interior do Kansas, cenário de um acontecimento trágico, uma morte. O delegado da cidade mais próxima dirige-se para este lugar. Naquela região, a vida rural era difícil, governada pelas poderosas forças da natureza que pairavam ameaçadoras e carregadas do inesperado sobre o dia a dia de seus habitantes. Tempestades de granizo, geadas, nuvens de gafanhotos, animais que nasciam mortos.

Penso que Ogden introduz o leitor, de forma direta, sem meias palavras, nas profundezas da mente humana onde forças imponderáveis fazem suas aparições, por vezes, deixando terríveis marcas. Quando descreve a casa da família onde ocorrera o crime, relata espaços pequenos, acanhados, uma casa inacabada onde seus habitantes viviam praticamente confinados, encolhidos. Estaria nos apresentando espaços mentais estreitos, poucas possibilidades de trânsito ou continentes psíquicos ainda rudimentares, carentes de desenvolvimento? Assim, durante toda a leitura somos colocados diante de possíveis associações e metáforas com estados de mente descritos com a sofisticação de uma linguagem simples, mas profundamente precisa: estados de mente da posição autística-contígua, da mente psicótica, esquizo-paranóide, superego assassino, entre outros.

Os personagens, Earl, Marta, Anne, Melody e Warren, vão sendo apresentados em uma perspectiva de tempo não linear, várias dimensões do passado se revezam com o terrorífico presente. Qual o espaço ou tempo do qual estamos falando e no qual estamos inseridos? Os acontecimentos estariam delineados muito tempo antes de se concretizarem? As palavras de Burnt Norton nos “Quatro Quartetos” (1943) de T.S.Elliot  apreendem, a meu ver, a essência do que Ogden quis comunicar: O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado/ Se todo tempo é eternamente presente/ Todo tempo é irredimível.

A história dos personagens vai tecendo a trama de trágicos acontecimentos, desdobramentos inevitáveis da fragilidade humana, mesclada com sensibilidade, sonhos, descobertas, momentos de ternura. Em “Meias Verdades” não se observa, em momento algum, evidências de moralidade, não se configuram culpados. Ogden compõe seus personagens em sua verdade com agonias, pesadelos e cegueiras, e, como nos diz Bion, com suas qualidades redentoras.

Bem, se minhas observações se estenderem, corro o risco de adentrar o romance e tirar dos futuros leitores o sabor da surpresa. A releitura da pintura de Velasquez,  “As meninas” (1656),  feita por Picasso (1957) traduz, a meu ver, a essência do que Ogden comunicou em seu livro.  Deixo com vocês a leitura de “Meias Verdades”!

“As Meninas”, Velasquez (link de origem nas Referências)
“As Meninas”, Picasso (link de origem nas Referências)

Referências

Bion. W.R. Seminários italianos.

Elliot, T.S. (1943). Quatro Quartetos: Burnt Norton. In: Poesia: T.S.Elliot. Trad. Ivan Junqueira; apresentação Affonso Romano de Sant’Anna.- [Ed. Especial] – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

Picasso, P. (1957). As meninas. http://louborghetti.blogspot.com/2010/09/releitura-parte-i-picasso-e-as-meninas.html

Velasquez, D.  (1656). As meninas.  https://pt.wikipedia.org/wiki/As_Meninas_(Vel%C3%A1zquez)