Obra do artista JR, feita na fronteira do México com os EUA (Fonte: https://www.jr-art.net/)

A psicanálise extramuros reflete sobre a responsabilidade social frente à Sociedade e à Cultura – que implica o psicanalista e seu olhar para intervir em esferas sociais; o fazer do psicanalista fora do consultório. Embora a psicanálise seja reconhecida em muitas dimensões da cultura e da sociedade a partir de conceitos e modos de pensar, em seu caráter clínico e institucional, ela permanece em um lugar de isolamento e inacessibilidade para a maioria das pessoas.

Devemos ampliar nossos horizontes para o fato de que o psicanalista é um ser humano que vive e faz parte de um grupo ou sociedade de pares nas esferas: regional, nacional (FEBRAPSI)[1], continental (FEPAL) e mundial (IPA).  As instâncias psicanalíticas se propõem a divulgar a psicanálise, difundi-la, cuidar de seus rumos do ponto de vista científico e também repensar a prática psicanalítica nos consultórios. No entanto, a função da psicanálise não precisa se limitar somente aos divãs, ela pode, também, intervir nas esferas familiares, políticas, educacionais, hospitalares, para exercer sua responsabilidade social.

Assim, existe desde o início da história da psicanálise uma Psicanálise intramuros e extramuros.

Historicamente, Freud criou a psicanálise também para as esferas sociais, segundo podemos constatar em suas palavras pronunciadas no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional de Budapeste, em 1918, e depois publicadas no texto “Caminhos da terapia psicanalítica”.

É muito provável que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta… Mas, como quer que se configure essa psicoterapia para o povo, quaisquer que sejam os elementos que a componham, suas partes mais eficientes e mais importantes continuarão a ser aquelas tomadas da psicanálise rigorosa e não tendenciosa. (Freud, 1919[1918], p. 181)

Nesse contexto, como forma de estimular uma Psicanálise mais integrada e participativa na comunidade, a IPA apresentou, ainda em 2002, através de seu presidente Otto Kernberg, a proposta de um outreach program, que representa uma proposta para que as instituições psicanalíticas respondessem aos desafios da sociedade contemporânea, incluindo a necessidade de alterações em várias práticas oferecidas para além do trabalho no setting estrito do psicanalista com seu paciente.  Assim, muitas Sociedades passaram a desenvolver programas para uma expansão “extramuros” da psicanálise, o que já ocorria há mais de 18 anos na SBPRP, representada pela atual Diretoria de Cultura e Comunidade e Comissão de Consultoria Psicanalítica, dentre outras.

A Comissão de Consultoria da SBPRP vem, ao longo dos anos, desenvolvendo vários projetos que saem da centralidade dos estudos psicanalíticos, no interior da instituição, e promovem a abertura para iniciativas com a comunidade. Seguem alguns grupos de trabalho :

  1. Grupo nos Fóruns de Ribeirão Preto e de Sertãozinho, junto à Vara de infância e família.
  2. Grupos no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, em diversos setores: Grupo de Atenção aos Transtornos Alimentares (GRATA); CTI pediátrico, Equipe de atendimento às vítimas de violência sexual, Equipe da Nutrição, Equipe da Neurologia, Hospital-dia de Psiquiatria

No projeto desenvolvido junto às Psicólogas e Assistentes Sociais do grupo da Vara de infância e família do Fórum de Sertãozinho/e do Fórum de Ribeirão Preto se apresentaram queixas de dificuldades no convívio interpessoal, problemas relacionados às limitações impostas pela instituição, em termos de autonomia; angústias surgidas no atendimento às crianças vitimizadas e ou abusadas, divergências nos encaminhamentos para a adoção, dentre outras. No espaço que oferecemos para pensar essas questões, objetivamos instrumentalizar o grupo, do ponto de vista emocional e pessoal. Os participantes interagiram expressando as angústias que emergiam dos atendimentos, das divergências da equipe e da não autonomia. A continência oferecida auxiliou na desconstrução de certos paradigmas, por vezes paralisantes, e ofereceu-lhes novas perspectivas com vistas a transformações. Mais instrumentalizados, puderam experimentar uma certa autonomia e passaram a encarar os desafios do próprio trabalho com superação e integração de equipe.

O outro projeto, no Hospital-dia de Psiquiatria, é desenvolvido junto aos residentes de psiquiatria em estágio no serviço e outros profissionais da equipe multidisciplinar. Em reuniões semanais, uma dupla de psicanalistas colaboradores discute situações e demandas da prática institucional, tendo a psicanálise como recurso de ampliação da compreensão e-possibilidades de intervenção com potencial terapêutico, sendo apresentada aos profissionais em formação como um recurso útil, rico e acessível, possível de ser integrado aos campos da psiquiatria e psicologia. Outra atividade, com o mesmo propósito, inclui todos os membros da equipe multidisciplinar, uma vez ao mês. A proposta inicial desse trabalho parte da premissa de que o serviço foi constituído, há mais de 40 anos, ” com a organização e o funcionamento baseados, predominantemente, em pressupostos psicanalíticos e de dinâmica grupal”, mas que, ao longo do tempo, a fundamentação e atuações em psicanálise vêm seguindo um movimento institucional, principalmente no campo do ensino e pesquisa, com perda de reconhecimento e alcance. Desse modo, manter presente no contexto do cuidado em saúde mental e formação de psiquiatras uma perspectiva psicanalítica tem o potencial de difundir a psicanálise como um modo ampliado de olhar para si, o outro, a realidade e as relações; e sua inserção em um ambiente onde as pessoas estão em constante interação, com suas angústias e conflitos, pode proporcionar a construção de uma experiência criativa e dinâmica a partir da precariedade e do sofrimento tão presentes ali.

O trabalho desenvolvido pela Consultoria Psicanalítica na Unidade de emergência do Hospital das Clínicas da FMRP-USP surgiu de uma demanda da diretoria do hospital que procurou a SBPRP visando melhorar a qualidade de vida de seus funcionários. A percepção pela diretoria do aumento das ocorrências psiquiátricas, afastamentos pelo mesmo motivo e aumento dos suicídios e das tentativas de suicídio dos funcionários indicava a necessidade de um outro olhar. Este foi o ponto de partida para a elaboração do trabalho que atualmente é realizado lá e envolve 4 membros da SBPRP. Os grupos multiprofissionais ocorrem com frequência mensal ou quinzenal e oferecem a possibilidade de pensar sobre prática profissional, as angústias vividas na equipe, frente a seus pares e à Instituição, visando diminuir o sofrimento diante das graves situações de sofrimento humano atendidas naquele hospital.

O pensamento psicanalítico e sua prática já ganharam lugar de prestígio por sua função na saúde mental, depois na saúde geral com o conhecimento das doenças psicossomáticas. Expandindo seu alcance, a psicanálise extramuros pode oferecer cuidados em âmbitos sociais que estão adoecidos, oferecendo conhecimento e transformação.

Acreditamos que é através de iniciativas como esta que podemos construir um intercâmbio entre as instituições psicanalíticas e a comunidade; entre os analistas e os demais. Esse espaço de troca de experiências e de conhecimento, segundo a opinião de Sérgio Lewkowicz, um dos representantes da América Latina na IPA, será decisivo para a sobrevivência da IPA e da própria psicanálise.

Consideramos que a formação psicanalítica, depende de psicanalistas que cuidem eticamente das suas instituições e de seus pares, também inclui a ampliação da perspectiva de uma psicanálise para além dos muros dos consultórios e instituições. Essa experiência é transformadora pois possibilita aos participantes uma maior amplitude no olhar, uma maior sensibilidade na escuta e um maior desenvolvimento social. Em nossa Sociedade o trabalho dos membros-filiados, junto aos grupos, sempre foi incentivado como uma contribuição ao trabalho da Comissão de Consultoria. Entretanto, é importante ressaltar que essa contribuição não é consenso em todas as Diretorias. Cabe a nós, membros-filiados, preservar e cuidar desse importante espaço de fortalecimento psicanalítico, como de formação dentro da Sociedade.

Comissão de Consultoria Psicanalítica/SBPRP

Alessandra Stocche

Andréa Ciciarelli Pereira Lima

Angela Kaline Mazer

Cristina Mendonça

Fabíola Januário Martin

Luciana Marchetti Torrano

Marta Dominguez Sotelino

Marystella Esbrogeo

[1] FEBRAPSI – Federação Brasileira de Psicanálise Congrega as sociedades psicanalíticas brasileiras filiadas à Associação Psicanalítica Internacional (IPA), organiza e fortalece suas atividades de divulgação, difusão e ensino da psicanálise em nosso território, assim como a participação na Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL).