por Ana Márcia V. P. Rodrigues, membro associado da SBPRP

“Ser gente é possuir um corpo, é ter um psiquismo e um coração, é conviver com os outros, cultivar uma esperança e crescer na perspectiva da fé em valores humanos”

Pessini

Convidada a participar do IV Encontro Regional da SBPRP, que será na cidade mineira de São Sebastião do Paraíso no dia 16 de fevereiro, escolhi para sua divulgação a imagem de uma grande escultura em bronze chamada “Boxhead”, instalada no Parque Inhotim.

Com o XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise se aproximando, e o fato de sua temática propor um link do centenário do texto de Freud O Estranho com o lema da Inconfidência Mineira, pensei na força representativa da escultura “Boxhead”, que significa cabeça caixa, para introduzir e debater o tema neste Encontro Regional.

Imagem: Reprodução – https://bit.ly/2TxwhPH

Não tive dificuldade em imaginar e valorizar a escolha desta escultura pelo fato de estar cercada por natureza abundante e instalada nos jardins de um dos melhores museus a céu aberto do mundo, Inhotim, situado no “sertão” de Minas Gerais. Sim, pois como nos disse G. Rosa: “O sertão está em toda parte”. A palavra sertão se refere ao árido norte de Minas Gerais, mas também a qualquer região afastada dos centros urbanos, como a região de Brumadinho, com seus povoados ribeirinhos remanescentes que vivem do cultivo da terra e em convívio com as minas de mineração.

Em “BoxHead”, Mickey Mouse, um ícone infantil americano, foi colocado sentado sobre uma pilha de livros e com uma grande cabeça que tem a forma de um bloco ou caixa quadrada. Na parte da frente da cabeça há um tipo de fechadura-boca e na sua lateral há um apêndice na forma de um tubo comprido.

Quando vi essa escultura pela primeira vez, achei-a lúdica mas um tanto chocante. Afinal, Mickey, personagem familiar de minha infância, com aquela cabeça quadrada de bronze que eu não sabia se era oca ou maciça, me dava uma sensação perturbadora. Sentado acima de sua cabeça, vemos um homenzinho boneco meio sinistro.

Inevitavelmente, passei a fazer livre associação de ideias com a estranha imagem pensando que poderia representar a cabeça-objeto do mundo das coisas substituindo a cabeça humana; ou uma caixa de TV daquelas antigas sinalizando o domínio do mundo das mídias de consumo; ou uma cabeça metálica desprovida de mente e coração, desumanizada, surda e cega já que não tinha olhos nem ouvidos.

Ao ler sobre o escultor Paul McCarthy, soube se tratar de um reconhecido e inventivo artista nascido nos Estados Unidos em 1945, que sempre fez obras irreverentes e cheias de crítica mordaz à cultura norte-americana e sua forte influência pasteurizadora sobre os costumes do mundo ocidental.

Triste Mickey, pensei: fragmentado, alienado e desconectado do mundo dos homens. Um tipo de Frankenstein do século XXI?

Lembrei-me de Bion dizendo que a mente é um fardo pesado demais para o animal humano carregar e que a humanidade ainda está na infância do pensamento.

E não seria essa a estética sombria do Estranho dos nossos tempos?

Enquanto estava envolvida com essas reflexões, fui invadida por uma enxurrada assombrosa de notícias sobre o rompimento da barragem da mina de extração de ferro, Córrego do Feijão, em Brumadinho.

A coincidência do tema sobre o qual eu refletia e aquele que eu via na TV me chocou: o rastro de destruição e expulsão da vida deixado pela lama da miséria de homens que hipertrofiaram maciçamente sua “Boxhead”. A dimensão de dor e sofrimento de suas vítimas beirando o insuportável me fez duvidar dos valores humanos. Mas Freud já havia nos alertado sobre a crueldade do gênero humano e mesmo assim nunca desistiu de sua luta incansável por continuar investigando a mente como um campo de forças criativas e destrutivas a nos governar.

Imagem: Divulgação

O mineiro Drummond, com sua capacidade de sentir e de pensar, há tempos já denunciava o voraz e perverso processo de desumanização que se instala quando a vida, o meio ambiente e os seres humanos são tratados como coisas e vistos apenas pelo vértice do lucro e do capital financeiro, em detrimento do uso da mente para o complexo trabalho de pensar amorosamente, cuidando e protegendo a vida.

Lidamos diariamente em nossos consultórios com dinâmicas psíquicas que transbordam as barreiras mentais e causam muito sofrimento, quando não há capacidade de contenção (continente) para ideias e sentimentos através do trabalho do pensar, ocorrendo descargas desastrosas de “rejeitos” através do corpo e da ação. E quanta violência e terror pode se alastrar em consequência desse trágico não-pensar ou mal-pensar que hoje observamos de forma macroscópica.

Transcrevo abaixo alguns trechos da bela poesia de Drummond “Canto Mineral”, que já mostrava, há mais de décadas, o mesmo cenário da disputa canibal pelas riquezas do ventre de nossa Minas Gerais. Quem sabe esse canto nos faz acordar!

Imagem: divulgação

CANTO MINERAL

Minas Gerais

minerais

minas de Minas

demais,

de menos?

minas exploradas

no duplo, no múltiplo

sem sentido,

minas esgotadas

a suor e ais, (…)

(…)O ferro empalidece:

Minas na ruína

de simplórios donos

de roças mal lavradas.

Minas orgulhosa

de tanta riqueza,

endividada

de tanta grandeza (…)

Da terra indefesa

negociada

com a maior fineza.

Minas, oi Minas

tua estranha sina

delineada (…)

Minas mineral (…)

Minas Tiradentes

Minas Liberal

Minas torturada

Minas surreal (…)

(…) Minas sub-reptícia

tarde defendida

de áureas cobiças

pelo astuto jogo (…)

(…)Minas

teimoso lume aceso

mesmo sob cinza.(…)                             [e lama (acrescento)]

a custo ensaiando

o salto da serra

bem alto,

o romper de algemas

mais férreas que o ferro. (…)