No dia 11 de outubro, Lidia Neves Campanelli comentou o filme “Trama Fantasma” no Cinema e Psicanálise de Ribeirão Preto. Abaixo, você encontra o texto completo:
Trama Fantasma foi escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, diretor e roteirista americano. Este diretor tem em seu currículo obras consagradas pela crítica e pelo público, como “Magnólia” (1999), “Sangue Negro” (2007), “O Mestre” (2012), entre outras. Vale citar a belíssima trilha sonora, composta por Jonny Greenwood, músico da banda Radiohead, parceiro de Anderson em outros filmes.
Ainda que “Trama Fantasma” possa nos remeter a uma obra tecnicamente apurada, ao mundo glamourizado da moda e, de fato, podemos lembrar que recebeu alguns prêmios de melhor figurino, chamou minha atenção por questões mais profundas, pelas relações que se desenvolvem entre os personagens e pelas relações internas que se estabelecem entre os vários aspectos de suas personalidades: relações interpessoais e intrapsíquicas. Penso que as características de perfeição e requinte do mundo da alta costura constituem o envoltório do filme, do seu personagem principal, mas seu conteúdo volta nosso olhar para o insólito que nos habita.
Reynolds parece viver entre o que anseia e o que suporta, entre a fome das emoções e o temor do que elas despertam, fantasmas. Suas várias relações afetivas são vividas em uma realidade bidimensional: quem entra em sua vida, logo sai do outro lado, pelos fundos, como aquelas portas de fachadas dos cenários de cinema. No breve intervalo de tempo entre a entrada e a saída, a inspiração para conceber a bela vestimenta. Construir invólucros, envelopes, esta é sua especialidade. É muito tocante a cena do café da manhã com Johanna. Reynolds livra-se da possibilidade de ter uma mente e do registro de um vínculo, descartando pelo distanciamento e pela indiferença as coisas indigestas, os confrontos, os elementos que poderia juntar para localizar a presença de um outro (foto A). O registro de um vínculo, sabemos, depende um espaço mental que suporte a falta, a diferença. Reynolds negava a falta.
A rotina rigidamente controlada constituía a proteção contra a chegada do inusitado. Precisava do silêncio absoluto para se concentrar e trabalhar. Os pequenos ruídos, as interrupções, eram perturbadores, o distraíam, “destruíam seu dia” ao denunciarem sinais do que era vivo e desconhecido, do que era pulsante e estava ao seu redor. Em um dado momento diz com rispidez que os movimentos de Alma são como um cavalgar dentro da sala.
Entretanto, toda esta operação no sentido de construir uma armadura, de criar uma condição de invulnerabilidade não são suficientes, a angústia infiltra-se e Reynolds sente-se “preocupado com coisas que não consegue identificar”. Sua mãe, fantasma que o acompanha, está sempre presente nos seus sonhos. Acredita que os mortos acompanham os vivos e que isto não é assustador.

A relação de Reynolds com a mãe tem alguns elementos em comum com a leitura que Ogden (2010) faz do trabalho de Freud (2015), Luto e Melancolia. Perdeu a mãe quando esta casou-se pela segunda vez, e mais tarde, definitivamente, com sua morte, mas não elaborou o luto, não deixou que ela se fosse e que permanecesse com ele apenas no nível simbólico. Precisava estar com ela concretamente, mantendo a mecha do seu cabelo dentro do forro de sua roupa, como um amuleto protetor. Aprendeu com a mãe o ofício de criar roupas femininas e, para evitar a dor da perda por ocasião do seu casamento, confeccionou, com muito sofrimento, o vestido de noiva. Podemos pensar que Reynolds “tornou-se a mãe”. Para não renunciar a ela, deixou de relacionar-se com o objeto externo, com as mulheres, seres mortais, com falhas, porém reais, vivas. Permaneceu, portanto, rigidamente ligado à sombra da mãe.

Na cena em que vê Alma pela primeira vez, percebe sua presença quando a jovem tropeça e faz barulho. Reynolds está sentado ao lado de uma janela aberta no restaurante para tomar a primeira refeição do dia. Associo a conjunção destes elementos, o dia que nasce, janela, barulho, alimento, com abertura para começos, com estar dentro de um cenário vivo e sentir-se receptivo e faminto. Alma é o nome da jovem que o atende no restaurante. Alma, nome de origem incerta, provavelmente derivado do latim almus, que quer dizer “nutritivo”. Por extensão, pode significar “a que alimenta, a que nutre, a que dá vida”. “Você me lembra da fome” diz Reynolds ao fazer um longo pedido para o café da manhã. Como Reynolds lida com a Alma do início do filme, com o que é vivo? A princípio, aproxima-se, encantado, mas quando o contato avança, com Alma querendo saber sobre ele, Reynolds coloca entre os dois a presença de sua mãe, a ligação com o fantasma. A partir daí, a curiosidade pela jovem começa a se desfazer e a se transformar, enveredando para a concretude. Precisa tirar seu batom, pede a ela que prove uma roupa ainda a ser criada, transformando-a em um manequim. O invólucro toma o lugar do que é humano e vivo. Poderíamos pensar que o continente estrangula e destrói o conteúdo?
Na continuação da cena, entra Cyril, irmã de Reynolds que cheira Alma: o processo de conhecer o outro começa por uma dimensão própria do animal, pelos sentidos, pelos primórdios do sensorial. Em seguida, o corpo de Alma é todo medido. Constrangida, mas sem oposição, dispõe-se a ser desvitalizada e transformada em um objeto com características de um objeto inanimado. Na repetição cíclica desta sequência de relações, Reynolds vive em um estado mental de fome crônica. Para manter intocáveis áreas de sua mente segue protocolos e perde de vista uma ação mais autêntica. Estas áreas despontam no “garoto faminto” e em seguida se retraem quando toma frente o poderoso e frio estilista. Como pode “garoto faminto” ganhar espaço na mente de Reynolds?

Alma, por sua vez, alcança, existência ao lado de Reynolds que ao vesti-la, transforma seu corpo em um corpo perfeito. Alma não gostava de seu corpo, mas nas criações de Reynolds fica plena. Em um mundo glamourizado, na condição de manequim, cumpre uma performance para existir. Profundamente ligada a Casa Woodcock e a superioridade que a define, Alma trata a fragilidade emocional de Bárbara de maneira cruel e moralista, tirando-lhe o vestido. E aí? Como experimentar quem ela é? Quando ousa questionar o tecido de um vestido, não encontra ressonância para sua opinião, mas não se rende. Parece crescer em Alma um desejo de ser mulher ao lado de Reynolds. Planejou surpreendê-lo com um jantar íntimo, não dando ouvidos a opinião de Ciryl. Reynolds, a princípio aceita, desconcertado. Alma está quebrando as regras, a rotina que o sustenta, a armadura que o protege. O conteúdo novo torna-se ameaçador, invasivo, como uma emboscada, um ataque: “Você tem uma arma?” Alma aponta o artificial, as regras do jogo, regras que estão nas entranhas da casa, paredes, portas, pessoal, roupas. Nada é natural, diz ela.
Vamos então aos momentos do filme em que Alma percebe e tenta quebrar este cenário, as tramas fantasmas. A primeira delas acontece depois de um desfile de roupas na Casa Woodcock. Reynolds fica exausto, tenso. Alma sai com ele para descansar e se dá conta que, no momento de fragilidade, ele fica receptivo, dócil, amoroso e se entrega a ela. O que é vivido neste instante de entrega e aconchego logo se desfaz. O Reynolds distante e esquivo reaparece, o homem dogmático que impõe a ela uma relação tirânica. Podemos pensar que ele se livra do senso de verdade quando considera que aquilo que produz no seu trabalho é superior ao vínculo. Alma, por sua vez, ousa e busca os cogumelos, chave de entrada para o mundo dos afetos, para estados de mente de fragilidade, de ser humano e faminto de afeto. É a segunda trama fantasma. Por um lado, a ação de Alma nos remete a uma perspectiva mágica e concreta. O ato toma o lugar do sonho, do trabalho mental, quando sabemos que pensar exige um percurso. Ao controlar a ingestão dos cogumelos, Alma manipula Reynolds e corre sério risco, colocando-o no limiar entre vida e morte. O que assusta é que o desfecho surte o efeito desejado. Estaria abrindo espaço para o “garoto faminto”? Reynolds envenenado e abatido entrega-se aos seus cuidados e quando melhora, a pede em casamento. A “presença” alucinada da mãe vestida de noiva no quarto desaparece com Alma e sua dedicação. Um detalhe interessante é que Reynolds, quando sente os primeiros efeitos dos cogumelos, tomba sobre o vestido de noiva da princesa e o danifica, como se, naquele momento, quebrasse o feitiço que o aprisiona, a maldição do vestido de noiva, aquela superstição que relata para Alma no começo do filme: quem faz o vestido de noiva não se casa, como ele que fez o vestido de noiva da mãe.
Fazendo um parênteses, é interessante notar que, as cenas que acontecem em torno da conversa de Alma com o médico, falando sobre Reynolds, sobre ela, de um modo mais profundo e as cenas da colheita e do preparo dos cogumelos, são cenas filmadas em um tom mais escuro e sombrio, contrastando com as cenas mais iluminadas que se passam na Casa Woodcock. A associação que me ocorre é que este uso de luz e cor remete à diferentes dimensões psíquicas dos personagens, entre o que se revela e o que está submerso, o que aparece e o que rapidamente se retrai, se esconde nos interstícios do mundo mental.
Continuando, o casal vai para a lua de mel nas montanhas cobertas de gelo. E lá, Reynolds rapidamente sente-se incomodado, irritado, com os ruídos de Alma mastigando no café da manhã. A frieza e o distanciamento vão retornando, surgem os atritos que tomam conta da relação entre os dois. Reynolds começa a perceber, assustado, que Alma está “virando do avesso” a vida que estabeleceu para si. Ela não pertence à Casa Woodcock. Algo está diferente. Henrieta Harding, sua cliente fiel, também está frequentando outra casa de moda. A perspectiva das mudanças, do novo, o atinge e o assusta.
E, por fim, a terceira trama fantasma. Alma, diante de mais uma recaída de Reynolds, lhe oferece os cogumelos venenosos. Desta vez, estão na casa de campo, Reynolds desenhando seus vestidos enquanto aguarda o jantar que Alma lhe prepara. Desta vez, percebe o que vai acontecer, mas não evita, não rejeita, antes, se submete. Ela lhe diz que ele precisa sossegar um pouco, e que para isto, ela o quer abatido, indefeso, dócil e receptivo e só ela para ajudá-lo. E depois, forte novamente. Neste episódio, o filme termina, com Alma contando ao jovem médico como sonha o futuro com Reynolds. Chamou minha atenção sua afirmação de que estar apaixonada por Reynolds tira todo o mistério da vida, como se o amor implicasse nesta posição de controle, de tudo saber, da vida sem enigmas e sem o desconhecido.
Penso que podemos construir duas versões sobre este filme. Uma delas, fica em torno da história oficial, da narrativa apresentada. Falei muito dela no texto que estou lendo para vocês. Esta versão, a meu ver, focaliza as relações entre o casal. Reynolds, o estilista que não elaborou a violenta dor da perda da mãe. Para manter-se nesta relação com seu fantasma, construiu um muro de proteção para a entrada do contato com o novo, com o amor, com o que pudesse ser vivo e palpitante. Este enrijecimento trazia-lhe graves consequências, empobrecia sua vida, mantendo-a repetitiva e fechada, deixando-o faminto. Suas relações com o feminino eram violentas e subjugadoras. Reynolds não suportava a diferença, precisava apagá-las para viver em simbiose com o outro. Até que Alma, de modo invasivo e controlador manipula seus estados mentais, envenenando-o com os cogumelos, para produzir nele a fragilidade, a dependência, o caminho para a relação com o outro, com seus afetos. Aqui temos uma atitude arbitrária, violenta e autoritária de quebrar padrões de relacionamento, sem respeito pelo outro, sem sonho e sem simbolização. O interessante é que este jogo violento, que beira a morte, parece ir tornando possível a vida do casal e trazendo perspectivas de futuro. Como considerar este paradoxo? Podemos ficar apenas com a ideia de que uma relação concreta e perversa, seria a única maneira viável para estas duas pessoas se manterem juntas?

A segunda versão, eu diria, é como um sonho sobre o filme, como uma metáfora. Como se estivéssemos, agora, diante do mundo mental de Reynolds, das relações entre as múltiplas dimensões da sua mente. É uma desconstrução do que está evidente, buscando outros olhares através de novos vértices de observação. Asfixiado em um cenário de repetição, Reynolds vive ligado ao passado, aos fantasmas e, mais do que isto, esfomeado de emoção. Alma, a dimensão viva da mente, que alimenta e nutre, está presente, talvez soterrada, surgindo como lampejos, em breves momentos. Sabemos que os desnutridos precisam receber uma dieta controlada e diluída. Não suportam uma alimentação com a quantidade de nutrientes que uma pessoa sadia costuma receber. Reynolds, tal como um desnutrido, não suporta maiores exposições à vida viva. Precisa de doses diluídas de emoção, contato, aconchego, presença do outro que possam fortalece-lo, passo a passo, até que, quem sabe, possa suportar uma exposição maior ao desconhecido. As cenas que envolvem o baile de fim de ano me parecem relevantes. Reynolds indeciso diante da porta fechada, decide finalmente sair. No espaço amplo da festa, muitos elementos estão presentes: música, bexigas, pessoas, elefantes. Reynolds expõe-se ao caótico, ao que é pouco organizado, barulhento, muito diferente de sua vida metódica e previsível. O casal dança abraçado quando a festa termina. Começa um novo ano ou um novo momento psíquico? Conversando com o médico, Alma sonha com o futuro: um carrinho de bebê e a convivência com todas as histórias e pessoas que estiveram em suas vidas. Poderíamos pensar em uma mudança catastrófica e no sonho e no afeto como um dos recursos para enfrentar o desconhecido?
O ser humano precisa desenvolver um espaço interno onde possa ocorrer o desenvolvimento mental (Junqueira Filho, 2018) e este espaço só pode ser obtido por meio das mudanças catastróficas que rompem com o que já é conhecido para que venha o novo. Rupturas desta ordem são catastróficas e ameaçam o self de enlouquecimento porque desestabilizam e dão novo formato aos padrões usuais do funcionamento psíquico. Em sua trilogia Uma memória do futuro, Bion sugere que as várias conotações implícitas no verbo to break poderiam representar o processo da mudança catastrófica: uma ruptura, uma domesticação, uma erupção, um colapso, ou uma desobstrução. Coloco como hipótese que Reynolds poderia estar acessando, com a intervenção de Alma como uma dimensão do seu psiquismo, através de doses diluídas, estados de mente antes obstruídos, vivendo uma mudança catastrófica que reúne uma gama de experiências psíquicas relacionadas com todos os significados descritos acima.
Finalizo com a seleção de três trechos do poema Os Três Mal-Amados de João Cabral de Melo e Neto. Com esta rápida passagem pela poesia, pensei em deixar com vocês rastros das inúmeras combinações de sentimentos e emoções que os encontros podem gerar:
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
João:
Essa é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? A desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
Raimundo:
Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente.
Muito obrigada!
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Referências Bibliográficas
Bion, W.R. Uma memória do futuro. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
Junqueira Filho, L.C.U., Comentários sobre a supervisão A10. In: Mattos, J.A.J.; Brito, G.M.; Levine, H. (org.). Bion no Brasil: supervisões e comentários. São Paulo: Blucher, 2018.
Melo e Neto, J.C. Os três mal-amados. In: Serial e antes. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.
Ogden, T.H. Uma nova leitura das origens das relações objetais. In: Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Porto Alegre: Artmed, 2010.
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