por Luciano Bonfante, membro filiado da SBPRP

Um dia, vivi a ilusão
De que ser homem bastaria
Que o mundo masculino
Tudo me daria Do que eu quisesse ter

Que nada
Minha porção mulher
Que até então se resguardara
É a porção melhor
Que trago em mim agora
É que me faz viver

Quem dera
Pudesse todo homem compreender
Oh Mãe, quem dera
Ser no verão o apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe
O Super-homem
Venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus
O curso da história
Por causa da mulher

Os versos acima são de Gilberto Gil para Super-homem (A canção), de 1979. Gil, ao falar em “porção mulher” na voz de um homem, estremeceu as bases de machos empedernidos de uma época que ainda perdura. No entanto, é a solução poética para admitir que o feminino nos constitui a todos. A sensibilidade do autor está no reconhecimento de que o homem possa conter a força do verão e a delicadeza da primavera, integrando feminino e masculino ao exercer sua sensibilidade. Forças naturais cíclicas e fecundas, como é fecunda uma mente integrada.

Imagem Namorados – Ismael Nery (https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1750/namorados)

A essência da canção nos lança à potência do feminino antes de derivações qualitativas como feminilidade, feminismo ou a própria sexualidade feminina. Esse feminino é da constituição do psiquismo arcaico, anterior às representações e introjeções, distantes ainda de gênero e identidade sexual. Pertence aos primórdios da mente, quando ela é fundada em sua subjetividade, anterior às atribuições da feminilidade, esta chegada depois e condicionada às interações sociais para se constituir a mulher. A última estrofe faz referência à primeira versão do filme Superman, mostrando um desesperado Clark Kent na pele do super-herói em um voo frenético ao redor da Terra, no sentido anti-horário, provocando a inversão do movimento de rotação do planeta e consequente reversão do tempo cronológico, momento em que o expectador assiste perplexo à cena de um carro soterrado voltando à superfície, devolvendo a vida à amada Louis Lane.

Em tempos de misoginia, feminicídios com requintes bárbaros, essa sequência heroica do filme, simbólica e poética, denuncia o abismo entre simbolização e a realidade das estatísticas. Na psicanálise, o feminino surgiu na teoria freudiana como dimensão da psicossexualidade. Além de Freud, outros tantos autores da Psicanálise e Ciências Humanas ainda dedicam livros inteiros ao tema. É um assunto recorrente na Cultura pela sua relevância numa sociedade de ética e alteridade frouxas, onde mulheres são diariamente massacradas. Tema tão essencial que não merece a conscientização de apenas um dia ao ano. É uma data importante, mas é pouco. Se promover mudanças significativas nunca é fácil, é urgente alcançar alguma “transformabilidade”, a despeito de atos heroicos. Super-heróis estão no imaginário psíquico e podem servir à poesia, mas igualmente à ilusão ou à fraude. Nossa diretiva deve ser a ação humana para, aí sim, tentar mudar o curso da história.