por Maíra Thomé Marques, membro filiado da SBPRP

(Sugestão da autora: leia o texto pelo vídeo ou aperte play para ouvir a música enquanto lê o texto abaixo)

Já fazia muitos dias. Não havia mais maneira de negar. Era fato de que o lado de lá estava muito silencioso. E ninguém deles tinha nenhuma boa hipótese. Ao menos nenhuma que fosse convincente por mais de cinco minutos. Ou algo assim que pudesse revelar o tempo curto.

Jatobá resolveu expandir sua voz. As joaninhas trabalharam incansavelmente convocando todos da floresta para a reunião extraordinária. Aos poucos foram chegando os que voavam, aos poucos foi-se chegando, cada qual a seu tempo, os que pulavam, os que galopavam, os que rastejavam, os que só assobiavam, os que só passavam… aos poucos se foi formando a corrente de muitas vozes que se tornariam um único som, para que todos escutassem. Era uma corrente linda de se escutar. Cada um transmitia no mesmo instante o que Jatobá dizia, cada sílaba da frase. Cada árvore era uma sílaba, cada fada era uma vírgula, cada animal era um acento, cada gota de água era um hiato. E o vento os juntava de tal modo que todos tinham acesso instantâneo ao que estava sendo revelado.

Jatobá convocava uma expedição. O silêncio já durava muitos dias, isso era um sinal de que algo estava diferente. Precisavam de exploradores, bravos guerreiros. A pequena fada estremeceu por dentro. Era seu chamado. Finalmente ela poderia ver com seus próprios olhos, sentir com seus próprios sentimentos o que seus antepassados diziam. Esses mesmos que dividiam algum parentesco muito distante com os humanos, há muitas e muitas eras antes de finalmente se diferenciarem e se revelarem fadas. Parecia que ela carregava, mais que seus irmãos, o gene humano dentro de si. Algo que clamava por sentir. Sentir o que se sabia, em conjectura, ser dor, ser amor, ser paixão, ser ódio… ela tinha grande curiosidade sobre isso… em especial a dor…

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Sua família era feita desse material especial, a capacidade de resistir, a capacidade de enfrentar. O poder deles era não se desintegrar em hipótese alguma. Alguns animais se transformaram, para os humanos, em alimento, outros em diversão; as árvores em casas, em lenha, em nada; a água em esgoto, em ácido; a terra em lixo; os pássaros em prisioneiros… Mas, as fadas não. Elas vieram de eras e eras de transformação, e hoje eram tidos como os seres que mais precisavam ser protegidos pelos entes da floresta, pela raridade, mas mais necessários em tempos de caos e destruição. Eram elas as convocadas.

Partiram naquela madrugada. E as vozes da floresta as acompanhavam, em uma canção que os unia a todos e as encorajava. Estariam juntos até a fronteira. Voz após voz, transformando o caminho em uma ponte possível de ser trilhada. Após essa linha, as fadas estariam sós. Parecia que a vida inteira dela havia sido um treinamento para esse momento. Ela foi, temerosa e orgulhosa, com os seus. Os outros eram velhos de guerra, já haviam lutado outras lutas. Mas nenhuma silenciosa dessa maneira. Via-se no semblante do pai um desespero já domado, na mãe uma preocupação sobre a escuridão óbvia demais, nos irmãos a vontade de lutar e vencer. Ela só carregava algo que mais parecia com o chamado. De ser, de sentir, de viver. E secretamente, de morrer. Ou ao menos o medo de morrer. Ela imaginava que isso faria a diferença entre a maneira que ela vive e a que os humanos vivem. O medo de morrer era a fronteira que os separava.

Chegaram com os primeiros raios de sol. Estava deveras silencioso. Mas talvez fosse dia de descanso. Aguardaram próximos ao limite que dividia as últimas árvores da floresta e as primeiras construções da cidade. Já não se escutava mais a voz da floresta. Elas estavam adentrando o terreno alheio. Nem sempre foi assim. Não havia limites, fronteiras ou muros. Isso muito antes. Hoje os terrenos são demarcados. E elas sabiam que estavam correndo perigo. Mas as fadas precisavam percorrer esse risco.

Foram silenciosas, mas preocupadas que esse silêncio as denunciaria. O que as diferenciaria daquele silêncio estranho, não saberiam dizer. Viajaram por entre as construções, a floresta de pedra, mas o tempo foi passando e realmente não encontraram passageiros, passantes. Mas ao longe conseguiam distinguir vozes humanas. Seguiram esse rastro, mas não conseguiam compreender essa ausência. Havia se dado alguma guerra difícil de ser decifrada. Não havia nada destruído, não havia nada em ruínas, nada que lembrasse a época que eles mais consideraram difíceis para os humanos: quando muitos deles foram trancafiados em campos, sem distinção alguma que pudesse ser revelada a elas, fadas, o motivo, e foram queimados, mortos, machucados. Na verdade não fazia muito tempo que isso acontecera. Talvez pouco mais de cinquenta anos humanos. Seria essa guerra decorrente desse massacre, se perguntaram.

Finalmente viram um homem passar apressado. Com rosto e mãos cobertos. Mas nada que denunciasse sangue, tão comum na destruição passada. Seguiram o transeunte. Não foram muito longe. E logo descobriram humanos. Muitos deles. Centenas. Milhares. Cada um em seu pequeníssimo território, fechados em suas fronteiras, aparentemente resignados. Ninguém sangrava. Ninguém gritava. Ninguém estava ferido. A pequena, valente e algo humana fada se arrepiou. De fato aquilo só podia ser broto germinado naqueles tempos sombrios. Procuraram por homens perigosos nas portas dos territórios, procuraram por sirenes, procuraram até por bruxas, por habitantes de outras dimensões. Nada. Não encontraram nada. Os humanos estavam obedientes em suas próprias gaiolas por sua própria conta e risco?

As fadas se entreolharam. Elas precisavam escolher e decidir muito rapidamente o que deveriam fazer. Boa coisa aquilo não era. Humano nenhum fica assim por tanto tempo sendo seres recheados de desejo, amor, ódio, dor, desespero… E elas eram fadas, seres claros, determinados, e a memória ou desejo nunca as trairia.

Foi assim que elas se foram. Voltaram. E quanto mais chegavam próximas à fronteira, mais escutavam o canto da floresta, empenhados que estavam em mostrar o caminho de volta, como sempre haviam feito.

Em pouco tempo elas não saberiam mais nada sobre o mundo humano. Adentrariam outro universo. O que se recolhia diante da mão humana, mas o que era carregado pelo som uníssono da mãe terra. Foi ali, muito perto de se despedir, que a pequena, valente e algo humana fada se arrepiou. E experimentou pela primeira vez um sentimento. Uma gota pequeníssima caiu de seu olho de tigre. E sentiu a dor. Só podia ser dor aquele rasgo no peito, o embrulho no minúsculo corpinho, uma vontade involuntária de se contorcer, de se deixar, de se entregar e nunca mais voltar à sua mãe terra.