No último dia 18, o Cinema & Psicanálise de Ribeirão Preto retomou suas atividades, agora no formato virtual!
 
A Psicanalista Ana Rita Nuti Pontes teceu comentários sobre o filme “Pecados Íntimos” e sua explanação foi seguida por uma calorosa discussão que passou por temas como: a diferença entre sexualidade e sensualidade, a condição de cada um para sustentar a intimidade em suas relações e a perversão em seus diversos vértices, desde a pedofilia e o voyerismo, até as que permeiam nossas relações no dia a dia.
 
Gostaríamos de agradecer a participação das mais de 70 pessoas que estiveram conosco enriquecendo o encontro e informamos que já estamos preparando a próxima apresentação do Cinema! Em breve voltaremos com mais notícias.
 
Arquivo Evento – 18 de Agosto de 2020 – Debate sobre o filme Pecados Íntimos

Por Ana Rita Nuti Pontes

Pecados Íntimos (Little Children)

Sobre Crianças e pecados
Deixai vir a mim as crianças, porque delas é o Reino dos Céus. (Mateus 19:13-15)

Little Children, literalmente, Criancinhas, é originalmente o nome do livro de Tom Perrota, que depois foi adaptado às telas e dirigido por Todd Field, também coautor do roteiro cinematográfico.

Prateleiras cheias de bibelôs de figuras de crianças e uma coleção de relógios, compõem a decoração da sala de uma casa. Estas são as primeiras cenas que anunciam a temática que se apresentará durante o desenrolar do filme. O diretor foca, sob diversos ângulos, a infantilização dos personagens numa comunidade, onde viver assim, é a regra do socialmente aceito e adaptável.

Os bibelôs contrastam com os marcadores do tempo; há algo de infantilização no ar, como se os relógios anunciassem o tempo que avança, mas que parou. Penso nos marcadores de tempo presentes no filme “Morangos Silvestres”. Se para Bergman, os relógios sem ponteiros mostravam o desejo de paralisia do tempo frente a perspectiva da finitude da vida, e se para Heidegger o tempo está atrelado à noção da existência, para os personagens deste filme, tempo e existência estão conjugados de outra forma. São adultos emocionalmente infantis que passivamente deixam-se ir pela vida, como se fosse imprescindível manter a situação (estabilishment) vivida, porque mudança requer disposição para a dor mental e fôlego para se viver o luto que inevitavelmente acompanha as mudanças. O enfrentamento das verdades, a busca de solução, a esperança de poder mudar e fazer de novo são dispositivos internos que demandam o vigor da capacidade de pensar e a renúncia aos modelos idealizados.

É num parquinho infantil onde tudo começa e termina. As mães que acompanham as suas crianças para brincar, como aparece no início do filme, ainda estão vivendo emocionalmente o último ano da high school, todas encantadas e fantasiando com o rei do Baile. Falam de suas vidas e como o sexo no casamento é vivido de modo enfadonho e programado. Para elas, certamente, é mais cômodo se arrumarem para irem até a pracinha ver o moço bonito, do que se interessarem em saber como desfrutar de um casamento e de uma vida sexual mais viva e satisfatória. Em enfrentarem o que não está bom e buscar mudanças. Parece que nem se angustiam porque está tudo certo, deve ser assim mesmo. Não há tesão, parceria e cumplicidade, que seria o resultado desta somatória. Não existe o casal adulto que vive as mazelas de um casamento, do companheirismo e cumplicidade, às brigas que terminam na cama com um bom sexo, como um selamento da paz. Não, isto não aparece. Aliás, os maridos não existem.

O casal principal que se forma, Brad e Sarah, vivem casamentos onde não existe o casal, onde não existe mais o desejo, que o sexo parece estar numa outra dimensão. Mas também falta intimidade. Como se faltasse se incomodarem com a situação e se perguntarem por que mesmo que viviam juntos.

O marido de Sarah se masturba olhando um site pornô e a mulher de Brad, profissional de sucesso, coloca o filho para dormir entre o casal, sinalizando que há um impedimento íntimo e sexual entre eles. Ambos, Sarah e Brad, estão frustrados profissional e afetivamente

Sarah e o marido parecem viver cada um em um planeta e Brad se adequa à situação, que sua mulher é a que vai à luta em busca do sustento do casal e fica muito claro que Brad era um meninão que se sentia impotente para se tornar um adulto.  Coitado, ele tinha medo de enfrentar as provas da vida, se sentia um menino que não daria conta de crescer.  Vivia sob as asas de sua mulher e por isso também tinha muita raiva dela. Como se ela, pela sua competência profissional, estivesse lhe roubando a condição masculina. Era no mundo adolescente que ele se sentia bem.

Sarah também escolheu o conforto. Viver com um homem rico que a sustentava, e assim não precisava se preocupar com suas dúvidas profissionais, que redundaria em sua incompetência para ser autônoma e auto suficiente. Se sentia enfadada com a vida e nem a maternidade a entusiasmava. Como se estivesse enterrada viva.

Importante observar como o modelo marido/pai que supre a casa, se mantem ainda hoje num modelo infantilizado, apesar dos tempos, porque esta é uma inscrição que faz parte do psiquismo, do desejo inconsciente de se manter numa configuração infantil.

Em contrapartida, existe a figura do marido/pai provedor que deseja apropriar-se da vida e da mente da mulher. Tão comum ouvirmos o homem possessivamente dizer: “Mulher minha…” Modelo perverso este onde quem provê o outro é dono de sua mente e da sua vida. E as mulheres infantilizadas acreditam que é assim mesmo. O gozo, neste caso, é que as mulheres acreditam que estão vivendo a plenitude infantil com a figura paterna.  Relação que se mantém infantilizada pela impossibilidade de se viver o luto do corte onde cada um é um e onde cada um com sua função plena ajuda o outro a se definir e se desenvolver. Mas também interessante observar como muitas mulheres realizam este tipo de fantasia infantil relacionando-se com seus maridos como se fossem seus filhos. Elas suprem tudo, cuidam, castram seus homens e dizem que sofrem porque eles não cresceram.

Voltando ao filme, para Sarah, conhecer Brad, foi avassalador. Sentiu algo muito forte dentro dela que a fez sentir-se viva e compreender a dor que trata o livro Madame Bovary. Entendeu que havia um grande vazio existencial dentro dela e deixou-se levar pelo desejo, como fagulhas que cintilaram em seu coração, e a inundaram de vida. Brad, por outro lado, se sentia desejado como homem, e neste recorte, num contexto limitado sem a realidade do dia a dia, como macho ativo, sentia-se bem. Ele não dava conta de mais do que isto. Sarah se apaixonou por Brad, conheceu sua sexualidade, a fêmea que existia dentro dela e passado os primeiros encontros dos amantes, ela começa a se interessar pela existência da mulher de Brad, se compara com ela, sente ciúmes, sofre. A realidade é sempre a realidade, e é inevitável a sua dor e sofrimento quando percebe que Brad não é só seu, que ele tem uma outra vida com outra mulher e que parece se sentir bastante confortável com o que existe.

A cena do jantar entre os dois casais é cheia de ciúmes das mulheres. Sarah sem perceber denuncia a intimidade que vive com Brad e Kathy, sua mulher, capta na hora que existe algo entre eles. O marido de Sarah, não percebe nada.  Kathy pode sentir a dor de estar sendo traída e tudo se descortina para ela. Perceber algo tem a ver com a disposição para viver algo que pode ser doloroso. A negação da realidade tem mesmo a função de nos proteger das decepções que doem no fundo da alma.

Outro personagem do filme que é muito importante é Ronnie. Personagem incômodo que desperta pena e rejeição, serve de alvo para hipocrisia e preconceitos. Aliás, não fica tão claro que Ronnie era um pedófilo. Me pareceu que ele era mais um exibicionista, de qualquer forma, um desajustado, um inconveniente, dentro do âmbito social. Interessante a cena do início do filme quando uma das mães da pracinha comenta de modo divertido, que seu irmão adolescente vivia exibindo o pênis para ela, contrastando com o pânico e o clima de caça à bruxas que, obviamente com a ajuda da imprensa, foi instalado no pequeno subúrbio burguês. A cena da piscina, quando percebem que Ronnie está na água e, histeria geral, todos fogem, como se ele fosse um tubarão que fosse atacar, é muito significativa.

A sociedade precisa muito de um culpado, de figuras desajustadas como Ronnie, ou até mesmo perversas para se amedrontarem com o que está fora dela e se iludir que é possível eliminar o mal, que está sempre no outro. Se elimino o mal que está no outro, provo para mim mesmo a minha inocência e santidade. Era o que fazia Larry, que representa este discurso social e religioso doentio. Acusar Ronnie de perverso, espumar de ódio contra ele com tanta violência era um modo de negar o assassino que existia dentro dele, com o fato que ele tinha sim, matado um adolescente.  Ronnie tinha uma mãe que o infantilizava, e ele fez um pacto de morte com ela quando não conseguiu escapar, suponho eu, de atender às demandas inconscientes de sua mãe, que era a de ter sempre um bonequinho com ela, assim como ela tinha a coleção de bibelôs em sua sala.

Após a morte da mãe, Ronnie vai até a sala e quebra tudo, provavelmente realizando um desejo que tivera desde sempre para se libertar daquela mãe. Concretamente ele tenta se castrar, cortando o pênis para atender o desejo da mãe de ser um bom menino.

O clima de suspense criado pelo diretor nas cenas finais do filme, a meu ver, é muito coerente com tudo que vai acontecendo, porque tem tudo para dar errado. Talvez muitos de vocês imaginaram que Ronnie, quando foi ao parquinho com uma faca, fosse matar Sarah e Lucy. E  de certa forma, acredito que este tipo de fantasia de tragédia cabe sim. Simbolicamente, aconteceram muitas mortes, muitas decepções.

Brad e Sarah que pretendiam fugir de casa como dois adolescentes, caem na real. Brad literalmente leva um tombo, inconscientemente provocado para impedir sua própria fuga e Sarah se vê numa situação aterrorizadora quando pensa ter perdido sua filha, no escuro do parquinho e ao ouvir o choro de Ronnie dizendo que tinha  perdido sua mãezinha.

O crescimento tem a ver com renúncia, com perdas, com transformações. O crescimento tem a ver com a capacidade de enfrentamento da realidade e das frustrações decorrentes do nosso narcisismo e idealização.

Acredito que podemos pensar no Complexo de Édipo como pano de fundo para olhar para estas criancinhas que estão dentro de cada um de nós.

Mas importante também ressaltar que há uma grande diferença entre a infantilização dos adultos e o reconhecimento que dentro de cada adulto tem uma criança que corresponde ao nosso lado criativo e em constante desenvolvimento.