por Luiz C. Toledo (membro filiado da SBPRP) e Maria Aparecida Galiote Pelissari
(membro efetivo da SBPRP)
Um grupo de amigos conversava no auge da pandemia em um encontro online. Comentávamos sobre os cuidados adotados ao longo dos meses: uso de máscara, diminuição drástica do convívio, redução ou adiamento de viagens, etc.
Uma amiga descreveu o bar na esquina de sua casa abarrotado de gente. Imediatamente surgiram relatos de situações parecidas: pessoas nas calçadas batendo papo sem distanciamento, como se a Covid não passasse de um delírio coletivo e pudéssemos simplesmente ignorá-la nos protegendo com um pensamento mágico. Se nos convencermos de que o vírus e a morte não existem, então permaneceremos à salvo.

Claro, alguém poderia comentar: vocês ficaram com inveja e gostariam de estar naquele bar também. Sim, é verdade.
Seja como for, em meio à conversa, alguém comentou:
– Vocês não acham isso tudo desumano?
Desumano?
Para que se possa falar em desumanidade é necessário partir de uma noção anterior do que sejam características humanas. O que estaríamos chamando de humanidade? E o que será, então, que caracterizaria algo como desumano?
Na “Fundamentação da metafisica dos costumes”, (1785) Kant considera que o fenômeno de “humanidade” se refere à capacidade de conviver socialmente. Será nesse contexto que encontraremos os fundamentos da moral e da ética do direito. Lévinas em sua “A ontologia é fundamental”, (1951) sustentou que a vida humana se iniciaria no momento em que se dá a percepção do outro, quando caminhamos do “um – para – o outro”. Para ele, a construção da relação ética iria além do direito, nascendo da pluralidade, na responsabilidade pelo outro.
A psicanálise desde sua origem considera o homem inserido na cultura. Em 1924, Freud escrevia que “a primeira renúncia instintual é forçada por poderes externos, e somente isso cria o senso ético, que se expressa na consciência e exige uma renúncia ao instinto.” (p.212). Freud considerava o desenvolvimento humano em seu contexto psicológico e cultural, associando a renúncia pulsional com a expansão da consciência e da percepção do outro como instituintes do ser sociocultural. Não renunciar levaria a um retorno ao pai da horda primeva (1913), à barbárie, portanto. Cabe, então, perguntar: a barbárie seria desumana?
Quando alguém comete um crime violento – como um feminicídio, por exemplo – sempre há quem se apresse para apontar a falta de humanidade do assassino. “Foi um crime brutal, obra de um assassino desumano”. Quando um político é flagrado roubando dinheiro público, ocorre o mesmo. “É um corrupto desumano”. A indignação é justificada, evidente, mas porque será que chamamos de desumanos aqueles que cometem atos que consideramos violentos ou criminosos?
Há algo de desumano na irresponsabilidade? No desprezo pela fragilidade daqueles com quem a gente convive? A destrutividade não faz parte da vida humana?
Nossa história é farta em massacres, guerras e violência. Todas as nações têm atrocidades para contar, em algumas (como o Brasil) elas estão escancaradas em cada esquina, não é preciso procurar. É fato que também avançamos nas artes, na cultura e nas ciências, afinal, o mundo contemporâneo não se compara, por exemplo, à barbárie da Idade Média, não é?
Sim, mas termos nos tornado uma civilização com valores mínimos de convivência não foi a consequência espontânea de nossa generosidade intrínseca, como afirmava Rousseau. Respeito ao próximo, direitos humanos e proteção aos vulneráveis são aquisições relativamente recentes, fruto de séculos da luta entre forças antagônicas. Se fossemos naturalmente bons e virtuosos os dez mandamentos não teriam utilidade alguma.
Desde Freud (e certamente antes dele), sabemos que a alma humana não é um reservatório de boas intenções, pelo contrário, é o palco da interminável batalha entre Eros e Tânatos.
Sucintamente (e novamente com Freud): a civilização promete a cada ser humano que, se refrearmos parte de nossos instintos, poderemos usufruir daquilo que só ela é capaz de prover. Segurança, convívio razoavelmente respeitoso, comida e saúde básica, são exemplos corriqueiros dessa contrapartida. O ser humano cede parte de sua liberdade, voracidade e agressividade para receber, em troca, algum amparo da comunidade.
Nesse sentido, parecem absolutamente humanas a aversão ao uso de máscaras, a recusa em evitar aglomerações e a negação dos riscos à vida. Saber que a propensão ao pensamento mágico, à violência e o ódio à realidade são traços humanos fundamentais é o que, talvez, nos dê a oportunidade de lidar com eles. O que nos habituamos a chamar de desumanidade é, e sempre foi, parte fundamental de quem somos.
Considerar desumana a nossa destrutividade pode cegar para o fundamental: a constatação de que o verniz civilizatório é perecível e superficial, muito menos confiável do quê desejaríamos.
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