texto por Luciano Bonfante, membro filiado da SBPRP
“O ESTRANGEIRO COMO CONCEITO LIMITE ENTRE O POLÍTICO E O
PSICANALÍTICO”
Filhos da época
Wislawa Szymborska
Tradução: Regina Przybycien
Somos filhos da época
e a época é política.
Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.
Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.
O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.
Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.
Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.
Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.
Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.
Para introduzir a próxima mesa da V Bienal de Psicanálise & Cultura, que entrelaça os temas como estrangeiro, o político e o psicanalítico, evoco os fatos do Brasil e do mundo que envolvem desde notícias de refugiados pelo planeta, ataques xenófobos, terrorismos religiosos, crimes racistas, feminicídios, etc. Tragédias cuja dimensão não cabe aqui, mas são registros de reincidências que assistimos com a repetida indignação para nos isentar de parecermos frios, afinal, as vítimas estão distantes de nós, como se fossem meras notícias circulando na TV e nas redes sociais em vídeos e imagens de fotojornalismo para ilustrar o horror. Um risco disso? Sermos apenas consumidores dessas notícias e os acostumarmos com tanta morbidez, uma reação que poderá mascarar o real e permanecermos na cegueira trágica ante a essas catástrofes sociais. Outro risco? Conversarmos apenas com números e estatísticas e nos distanciarmos da gravidade desses acontecimentos. São sintomas de uma humanidade doente, vulnerável e desamparada. O que fomenta a violência é considerado e nomeado como violência? E digo que quando você estiver lendo este texto, terá atualizações sombrias de tragédias sociopolíticas envolvendo o estrangeiro representado por grupo étnico, credo, classe social, condição sexual, ou qualquer outra marca na diferença Eu-Outro.
Quando surge o estrangeiro? Teoricamente pode ser por volta do oitavo mês de vida, na conhecida “angústia do oitavo mês”, teoria de René Spitz em que o bebê sente medo, “estranha” quem ele não reconhece. Antes disso, o bebê sente-se confortável nos braços de quem o protege. Quando nasce o preconceito ao estrangeiro que conduz à xenofobia? Segundo Radmila Zyguris, psicanalista francesa de origem iugoslava, “a xenofobia se torna possível com reconhecimento do Eu e se desenvolve com a constituição do Nós”. Inicialmente, a etimologia de xenofobia está de acordo com o “medo” ao estrangeiro. Quando o elemento “ódio” vem se interpor e agravar a visão do Outro como odiado e ameaçador?
Podemos afirmar que a “estrangeiridade”, no sentido de “estrangeiro de si mesmo”, é da concepção da Psicanálise em sua nascente. Freud apresentou ao mundo sua concepção de inconsciente afirmando que “somos estrangeiros em nossa própria casa”, uma referência à condição de estarmos sujeitos a processos desconhecidos que regem nossa vida psíquica sem que tenhamos controle absoluto do que levamos em nossa própria mente. Uma casa-mente que conserva em sua subjetividade a história de antepassados familiares e históricos que voltam a se apresentar para novas elaborações. E o que não é elaborado em novas narrativas, será sintoma.
O caráter político e psicanalítico da tensão Eu-Outro em suas fronteiras comporá a pauta da conversa nesta mesa, “O estrangeiro como conceito limite entre o político e o psicanalítico”, uma mesa redonda, democrática em sua forma e disposição, composta pelas psicanalistas Caterina Koltai e Miriam Debieux Rosa, onde os participantes serão estimulados a opinar e contribuir com o debate. Como articular o pensamento psicanalítico, que para muitos deve estar circunscrito ao consultório – o privado, e levá-lo à esfera social – o público, e propor uma Psicanálise implicada como tem sido chamada? Além da clínica do tratamento individual, como o âmbito social pode igualmente ser campo para a Psicanálise? Estas e outras instigantes perguntas são para pensar as questões pertinentes à nossa proposta do evento, lembrando a interface entre Cultura e Psicanálise contida na concepção do evento.
O título da mesa “O estrangeiro como conceito limite entre o político e o psicanalítico” foi literalmente pinçado da obra de uma de nossas convidadas, Caterina Koltai, e nos inspira a ampliar nosso pensamento para lidar com a complexidade dessa temática. Na ocasião do convite, ela respondeu de maneira verdadeira e tocante, ancorada na própria biografia: “aceito, sim, com o maior prazer, é um tema no qual me sinto implicada e do qual não tenho como fugir”. Sua fala revela uma responsabilidade que pode ser de todos nós.
Nossas convidadas são intensamente envolvidas com suas atividades voltadas à
temática político-social imbricadas com o pensamento psicanalítico.

Caterina Koltai, é psicanalista. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Graduação em Sociologie pela Université Paris Descartes, especialização em DESS on Planificacion de L’Education pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbone (1975). Mestrado em Planejamento dos Recursos Humanos pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbone. Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem experiência nas áreas de Sociologia e Psicanálise. Atua principalmente nos seguintes temas: estrangeiro, Psicanálise, Política. Tem vários livros e artigos publicados. Como se vê, com tanta dedicação, Caterina tem muito a contribuir conosco.

Miriam Debieux Rosa com trabalho intenso dedicado ao tema. É Psicanalista, professora Associada do Programa de Psicologia Clínica (da USP, onde coordena o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política e o Grupo Veredas: psicanálise e imigração. Foi Prof. Titular do Programa de Pós-Graduação da Psicologia Social da PUC-SP onde coordenou o Núcleo Psicanálise e Política, até 2017. Tem bolsa produtividade CNPq. Lidera o Grupo de pesquisa CNPq Sujeito, sociedade e política em psicanálise (USP). Membro do Grupo de trabalho Psicanálise: Política e Cultura, da ANPEPP. Tem pesquisado e produzido particularmente sobre a dimensão sociopolítica do sofrimento, a clínica do traumático, as expressões da violência; violação de direitos; as modalidades de resistência e enfrentamento dos sujeitos nas situações de vulnerabilidade; a construção/transformação do laço social na contemporaneidade; a imigração e migração; responsabilidade e responsabilização; crianças e adolescentes. É autora do livro Histórias que não se contam: psicanálise com crianças e adolescentes (2010), co-organizadora do livro Debates sobre a Adolescência Contemporânea e o Laço Social (2012) e do livro Desejo e Política: desafios e perspectivas no campo da imigração e refúgio (2013). Publicou o livro A clínica psicanalítica face ao sofrimento sociopolítico (2016), recebeu primeiro lugar no prêmio Jabuti 2017, psicologia e psicanálise.
A urgência de falarmos em política e Psicanálise pode ser sentida no nosso cotidiano, ao tomarmos contato com acontecimentos do mundo em tempo real e que permanecem em nosso campo mental demandando elaborações. A poesia Se fôssemos infinitos, de Bertold Brecht, dramaturgo e poeta que acreditava na transformação do homem nos lembra da nossa transitoriedade, tão escancarada em tempos de pandemia:
SE FÔSSEMOS INFINITOS
Fôssemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.
A evidência de nossa condição transitória pode ser inspiração a uma alteridade que possa mover minimamente algo desse “muito que permanece”, por mudanças que não resistem por temos de lidar com o padecer infligido pelos retrocessos sofridos em determinados momentos históricos.
Marcel Duchamp, ao afirmar que acreditava no artista e não exatamente na arte, faz pensar na crença em um homem que transcenda sua função. Sua visão nos desafia estender esse humanismo a outros contextos do conhecimento em que está envolvida a dignidade humana. Acredito que esta mesa poderá contribuir com reflexões e possibilidades de ampliar nosso modo de pensar. Aguardamos sua participação!
Inscrições abertas a partir do dia 11 de Janeiro de 2021 no site: sbprp-bienal2020.com
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