por Daniel Rodrigues de Freitas, membro filiado da SBPRP

Cada um tem os óculos que merece. Assim dizia um colega oftalmologista, irritado com a indecisão dos pacientes em dizer, naquele teste com lentes, com qual grau está enxergando melhor. Desconfio que seja assim com os analistas também. Cada um tem aquele que merece. Não estou dizendo sobre indicações, qual escolher. Apesar que isso também. Digo algo um pouco maior, ou menos trivial que esse pensamento. O mesmo analista, não é o mesmo para todos os pacientes. E não é mesmo. Então, duas pessoas fazendo análise com o mesmo analista, não terão o mesmo analista. Tente explicar isso para um engenheiro, um que nunca tenha feito análise. Ele vai entender muito bem, mas não vai saber disso. Entender não é saber de fato. Tente explicar essa também. Dito isso que eu disse, vou dizer agora do meu, e só meu analista.
Que se abram as cortinas! Não vou falar lá do palco, estarei mais atrás, lá na coxia. É lá que eu vivo. Sou um ser dos bastidores, da bagunça, da confusão, não da coisa pronta. O feito para mostrar, o palco, me é um pouco cansativo. Paradoxalmente, aqui estou né? Mas deixo o palco para os políticos, alguém que acredite em propaganda partidária, ou simplesmente precise demonstrar virtudes…
Enfim, o foco aqui não sou eu, é o MEU analista (piscadinha pra vocês). Então, ele é terrível! Vejam vocês que ele me deixou sem sessões hoje. Isso mesmo, sem sessões, no plural. Seriam duas! Não sei porque faço tantas. Foi exigência da Sociedade de Psicanálise inicialmente, ou assim eu preferia dizer que era. Agora que essa desculpa acabou, vou culpar a quem por essa insanidade? Meu comodismo talvez, ele pode ser um bom culpado. Sou muito acomodado. Faço quatro sessões por semana, uma loucura, sem ninguém me obrigar, por ser acomodado. Deve ser isso. Aliás, não é nada cômodo fazer análise com ele.
Caro, muito caro, caríssimo. Gostaria de dizer que ele nem sabe o quanto é caro, mas o maldito sabe, e justamente por isso cobra caro! Além disso é mal-humorado! Tão mal-humorado que às vezes a gente morre de rir do mal humor dele, e do meu também. Só que o meu mal humor é ele quem provoca. Às vezes eu falo, falo, falo, falo, praticamente não deixo tempo de ele dizer nada. Depois de tanta coisa que eu digo, ele vira para mim e “só” diz: “Parece que hoje você não está querendo conversar”. Como é que é? Depois de tudo, aquele monte de coisa, que eu falei? Saio espumando! Volto lá só para não deixar barato! Aliás, é muito caro. Já mencionei isso?
Me lembrei de uma poesia que narra uma pessoa abrindo os armários e as gavetas atrás de faca, de briga, de confusão. Muito curioso! Briga e confusão não se acham em gavetas! Mas pode saber, quando você escutar alguém batendo, abrindo e fechando com força portas e gavetas, essa pessoa está procurando briga. O ser humano é muito curioso. Uma obra de arte, meu analista diria. Só que ele também batia coisas, tinha hora que ele dava uns tapas no braço da poltrona, tem hora que ele dá uns quase gritos também. A impressão que eu tinha é que eu ia conversar com um dragão, que ficava dentro de uma caverna, que de vez em quando saía de lá, fumegante, abrindo suas asas. Engoli tudo que é medo e receio e disse isso para ele, na cara dele. “Então você deve ser muito corajoso, de vir conversar com um dragão”. Ele não me disse que não era um dragão, não me disse que eu era maluco. Essa atitude foi me ajudando a ser “realizadamente” corajoso. Sabedor de minha bravura. (Não achei, no meu linguajar, palavra melhor que essa, então inventei “realizadamente”).

Com o tempo, percebi que aquele dragão fumegante, expelia coisas aquecidas, mas não era fogo para me queimar. Era mais como uns pães caseiros, saindo do forno, uma fornada de pão de queijo. É alimento, é nutritivo e é saboroso, mas se você for afoito, se queima. Lembrei da minha avó, dona Rita, quando tirava lasanhas do forno e pedia para esperar esfriar. Ou pelo menos eu acho que ela pedia isso, pois com a boca toda queimada de lasanha fervente era difícil escutar qualquer coisa. Com isso eu não estou dizendo que meu analista é bonzinho não. Deus me livre de um analista que se preocupa em ser bonzinho, analista de palco… Já tive experiência com pessoas mais doces e acolhedoras, mas nunca boazinhas… Aliás, como é que se vai ser menos doce e acolhedor que um dragão? Voltemos à coxia. Eu disse um Deus me livre, agora à pouco? Fiquei religioso? Re-ligare ele diz, sobre a palavra religião.
É curioso que às vezes eu sei quais palavras ele usa, sou capaz de tentar imitá-lo. Só que quando é ele quem diz tais palavras, o significado é outro, um significado que eu definitivamente não sabia. Até quando ele não diz nada tem significado! Às vezes coloco um significado que não é o que ele está dizendo, quase sempre. Num silêncio dele, eu já vou logo achando outra coisa, ele dispara: “Não posso pensar?” Irritante, né? Pensar leva tempo. Parece que todo mundo já deveria saber disso, nessa altura do campeonato, mas muito pouca gente sabe! E menos pessoas ainda colocam isso em prática. Eu mesmo, tem horas que esqueço. Ele se dá tempo, ele fica à vontade, ele pensa, ele escuta. Numa época de se exigir uma reação, uma opinião, um posicionamento, um pré-conceito imediato de tudo! Tempo de respostas rápidas, coletivas, pré-formadas e que não contêm nenhum pensamento original. Tudo laje pré-moldada. Tem um sujeito que escuta, pensa, fala, ou não fala… artesanalmente, ali, passo a passo vai construindo um pensamento inédito, saído do forno… não dá uma inveja danada? Pelo menos uma raivinha?
Mas a maior inveja que eu tenho dele, é dele ter pacientes interessantes, inteligentes, pacientes, bem-humorados e, principalmente, modestos como EU! Eu queria ter pacientes assim, que sorte a dele! “Não é sorte. O paciente precisa ser construído”. Vocês estão entendendo o que eu passo com esse homem? Às vezes é um passo de luta, às vezes um passo de dança (com homem?), um passo em falso, um passo para trás ou só um esperneio. O pior é que às vezes estou conversando com algum paciente meu que me pergunta se eu sou mineiro. Não é que eu sou mineiro, é que a pessoa com quem eu mais converso nessa vida, há alguns anos, tem esse sotaque. E eu “pego” as coisas, sou meio ladrão. Mas hoje ele me deixou sem sessões. Melhor, posso dormir até mais tarde, sou preguiçoso mesmo, sou acomodado. Vou economizar… “- Pra quê ficar arrumando consolo?”, ele poderia muito bem me dizer isso.
Tá bom, já que é para falar sozinho, vou fazer uma oração. Me deem um desconto, além de tudo ele foi fazer exames clínicos… e não é só isso, minha supervisora resolveu me abandonar também, tudo hoje. A solidão dá asas robustas para a imaginação.
Pai nosso que estais no céu, traga logo aquele insuportável, eu tenho muito o que discutir com ele, ele é meu dragão favorito… aproveita que você está aí e cuida da minha supervisora, que também é muito cara… E PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS… e não me deixeis diminuir as sessões, mas livrai-nos do Mal. Amém.

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