Contos nos remetem aos sonhos. A seção Ateliê do Pensar convida os leitores a embarcarem nas emoções sonhadas pela psicanalista Thaís Marques no conto autoral: “A Cabeça da Garoupa”.
Um conto que nos leva aos sabores e as dores trangeracionais. Que nos remete a infância, aos encontros que se misturam afetivamente com a culinária que conta um pouco da historia dos nossos antepassados e as dores do tornar-se.
A cabeça da garoupa
por Thaís Helena Thomé Marques, membro efetivo
com funções didáticas da SBPRP

Lá estava ela entre elas, menina-moça! Ao todo eram quatro gerações de mulheres libanesas convivendo em intensa relação de intimidade, na qual os ensinamentos eram passados de mãe para filha sem questionamentos. A sabedoria árabe da alquimia culinária tentava fazê-la moça, e as orientações não cessavam – corriam como o rio corre para o mar.
As folhas de uva recheadas com arroz, carne moída, tomate picado e especiarias teriam que ser cuidadosamente enroladas de forma a parecer charutinhos bem empacotados, para que não desmanchassem ao toque, pois seriam degustados com as mãos. O quibe teria o resultado gustativo perfeito de carne e trigo moídos com cebolas e hortelãs minusculamente picados, azeite, e condimentos árabes muito bem misturados e batidos para que se ligassem ao sabor do contentamento.
A garoupa, peixe da costa libanesa muito consumido na região, seria limpo de suas vísceras, escamado e bem lavado, já sem a cabeça. Os próximos passos seriam salgá-lo, acrescentando as tais especiarias e lascas de limão em seu interior, bem como pimenta-do-reino moída, paus de canela, e folhas de louro. Depois, untá-lo com um bom tanto de óleo de gergelim e, por fim, envolvê-lo em papel alumínio para passar pela efervescência do forno – em média temperatura, mas com a máxima confiança.
Para ter continuidade, a herança da culinária árabe deveria ser incorporada ao patrimônio familiar, assim como a sensação de bem-estar sensorial ao se observar sua degustação prazerosa. Toda aquela sempre muita comida teria que comunicar através do sabor, cor e forma, a sensação de um momento de deleite inesquecível.
A sobremesa não poderia faltar, porque era como música em festa; um elemento indispensável. A imagem expressiva é a do Nammura, saboroso doce feito de um assado misturando farinha de semolina com uma boa quantidade de manteiga, amêndoas fervidas em água de rosas, e coalhada fresca. Antes de ir ao forno é coberto com amêndoas inteiras e, depois de assado, espetado com os dentes de um garfo para ser inteiramente abraçado por uma fina calda de açúcar, semolina e água de flor de laranjeira. Maravilhoso, simplesmente!
Mas, como nem tudo são flores de laranjeira, a menina-moça, futura mulher da última geração, sofria com seus questionamentos. Olhava a vida e se espantava. Perguntava à sua mãe por que a cabeça da garoupa teria que ser cortada, afinal, qualquer cabeça sempre fora considerada parte essencial e continente de tudo que era vivo, por que não poderia ser servida também?
Em sua mente moravam angústias relativas ao primeiro amor e à dor da indignação. Impossível viver o amor por não ter sido escolhida. Por que foi assim? Por que não me escolheu? Por que a cabeça da garoupa tem que ser cortada? Por que isso? Por que aquilo?
A mãe, sem questionar, se inquietava dizendo que assim lhe fora ensinado por sua própria mãe e que sua mãe, por sua vez, recebera a herança da mãe dela, bisavó da menina-moça. Aceite sem discussão, dizia, para se livrar logo dela.
As indagações não cessavam. Tal qual a mãe, a menina bem que gostaria, para acabar de vez com o tormento. Em busca de alguma resposta foi ter com a bisavó, que vivia entre elas e falava libanês, herança inquestionável e insubstituível para uma pessoa tão árabe. Somente a linguagem verbal articulada seria suficiente? Era um problema de línguas ou de coração? Talvez faltasse entre elas a linguagem do coração. Por que ela nunca aprendeu minha língua? A menina se perguntava, e sofria.
De um tio que tinha permissão para questionar, pois entendia a língua e era homem, finalmente teve a resposta. Quando recém-casada, a bisavó tinha em sua pobre cozinha uma única fôrma de ferro na qual o peixe só caberia se lhe fosse tirada a cabeça. A peça fora forjada por seu amado esposo, pescador que havia se perdido no mar. Quanta dor lhe causou saber que seu bisavô desaparecera no oceano! Seria essa a razão pela qual ela mesma tinha tanto medo do mar, e de toda sua vastidão? Não seria melhor ter aceitado as sugestões para se contentar sem discussão? Não aguentava mais ser ela mesma!
O espanto tomou conta da agora moça-menina, pois na raiz dessa tentativa de variação estava uma sensação de desastre. O conhecimento passado para as gerações seguintes quase como uma repetição supersticiosa e sem sentido – a de que a garoupa à moda árabe teria que ser preparada sem cabeça – poderia ter alguma chance de alcançar outra forma na história de uma relação que um dia se perdera.
Para a menina-moça ou moça-menina – já não sabia mais quem era – envolvida com as dores de uma primeira paixão, mergulhar na sensorialidade compartilhada por tantas gerações de sua família em busca de sentidos lhe oferecia substância para sonhar e se apropriar de seu próprio significado. Mas não sem dor.
A dor compartilhada por gerações, cujo significado havia se perdido com o tempo, tornando-se um ato ritualístico banal, que lhe parecia esvaziado de emoção, ganhava vida. Estava sendo impulsionada a romper com o familiar já sabido e formatado – com a mentalidade de rebanho. Chega-lhe um questionamento conectado a uma relação ancestral de um casal, o que confere sentido ao momento presente, às suas próprias emoções, e lhe dá uma noção singular de si mesma.
Agora sim a narrativa dos primórdios da existência familiar, registro de separação e dor, e o ato repetitivo e sensorial ganhavam novo significado. Imaginava preparar o peixe cultivando os conhecimentos da herança familiar de modo singular. Um dia, quando se sentisse mulher, será que assaria a garoupa inteira, mesmo temendo que um vaticínio tombasse sobre sua cabeça? O peixe poderia não ficar apreciável. Seria essa a famosa “praga de mãe”, ou a horrorosa ameaça da moralidade arcaica de todas elas juntas?
Mesmo assim, a menina sentiu-se entre quase-moça e quase-mulher. Inexoravelmente diferente das mulheres da família, experimentou uma emoção dolorosa e paradoxal. Sentia sua existência com acréscimos, o patrimônio culinário familiar poderia ser usado de forma criativa e singular. Estava quase liberada da repetição, mesmo pertencendo a uma família, e sofrendo as pressões naturais para diluir-se nela. Sabia de sua própria atração por usar a fôrma conhecida.
Sonhou que nesse trânsito encontraria amores que lhe oferecessem diferentes tamanhos de fôrmas e formas, e com os quais pudesse compartilhar os pratos que elaborasse. Quem sabe, então, nos tempos de separação, os momentos de degustação compartilhada seriam inesquecíveis, porque poderiam adquirir outras formas, outras fôrmas.
12 de fevereiro de 2022 at 23:10
Maravilhoso Thaís Marques Abraços
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