Consternados, tentando elaborar tamanho horror, nós do Blog da SBPRP convidamos o leitor para uma expedição mata adentro pelo Vale do Javari, na voz do membro filiado Luciano Bonfante que tenta, com sua narrativa poética, iluminar as escuras trevas de uma barbárie cometida contra um indigenista e um jornalista estrangeiro que lutavam pela preservação da Amazônia. Confira a íntegra do texto:
Um Conto da Amazônia: Bruno e Dom
por Luciano Bonfante

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos (…)
(Passagem das horas, Álvaro de Campos)
Na Floresta Amazônica o rio segue seu curso recortando a mata nas curvas de suas águas bordeadas de verde, espetáculo natural dos tempos em que os dois personagens dessa história estavam dispersos na natureza, no tempo sem tempo, antes de suas formas humanas. Esses dois seres entraram na vida por terras diferentes do planeta, de línguas dessemelhantes, mas um idioma comum os uniram em uma dupla harmônica com o universo. Desconfia-se que eles pertencem a uma classe de insólita sapiência, raros espécimes misteriosamente espalhados, cuja missão da estirpe haveria de se cumprir na floresta. Os índios os veem como seres de asas enormes, de folhas em vez de penas, seres que protegem a selva de seus algozes. Eram seus avatares, visíveis apenas aos que creem em seus dons. Lendas da floresta. Vivendo como bicho gente, protegem o índio de espoliação de sua terra por direito, rio e floresta de serem reduzidos ao consumo obsceno. A predação da natureza criadora do homem segue seu curso diabólico, praticado pelo mesmo homem, de sua própria espécie, igualmente destruidor das formas de vidas existentes. Estranhamento.
Como explicar essas contradições e não endoidecer com tanta contrariedade e insensatez? São questionamentos dos amigos. Proteger quem de quem? O homem do mesmo homem? Mas é tão esquisito isso, insano, reflete um deles. O jacaré não precisa proteger o jacaré dele mesmo, nem a onça da onça, completa o outro. Com ideias assim, deslizavam o rio numa canoa, ciosos da missão crucial, a coragem na alma e o amor à beleza da Terra. Navegantes na vida e daquelas águas, eles proseiam no balanço das ondulações do rio, encantados com aquela imensidão e com os sons da floresta em seu entorno.
O desconsolo dos companheiros, é saber da vida da chamada civilização, de humanidade ilógica. O homem fruto da natureza é o mesmo homem que a tudo preda, envenena o solo e a água, corta a árvore, extermina o índio e o animal. Particularidade do bicho pretenso civilizado, porque, na natureza, jacaré come peixe, onça come capivara, sucuri come muitos bichos. Tudo bem-feitinho pela mãe natureza em manutenção da vida selvagem. Esses assuntos eram recorrentes na conversa dos parceiros.
Subitamente, perceberam assustados, outros seres da civilização humana rumando no encalço deles em ataque traiçoeiro e mortal, por razões que a razão não entende, e jamais haverá de entender. Os dois amigos se entreolharam atônitos pressentindo o fim de uma jornada. Nesse instante de espanto e susto, suas vistas enegreceram de horror. Suspiraram pela última vez. Barbárie perpetrada.
De volta à luz, as duas almas avistaram com tristeza abismal os dois corpos abatidos e esquartejados como caças. O sangue de um misturado ao sangue do outro, drenando lentamente no solo úmido. Desolação. As almas aturdidas entenderam a emboscada covarde armada por seus semelhantes. As vidas esvaídas ali deixavam um lamento de dor transcendente.
Durava a aflição quando um torvelinho alto e vigoroso se ergueu arrastando poeira e folhas secas. Dali surgiu a voz de uma entidade mítica da floresta, anunciando às almas o poder de retorno à vida terrena, de voltar à existência como bem entendessem: bicho homem, bicho manso ou bicho bravo, bicho inseto, peixe ou pássaro, qualquer um da fauna diversa da floresta. As almas trocaram olhares de cumplicidade, e a afinidade entre eles foi suficiente para dispensar conversa e afirmar veemente o desejo de voltar à vida na pele de qualquer bicho, menos bicho homem. Sabiam das agruras de habitar o bicho gente. O desgosto infindo nessa forma de vida trouxe o desencanto com esse bicho, essa espécie malograda, surda para a boa palavra e assassina do homem de bom gesto. Conheceram a consciência humana, roçaram a bondade de alguns, mas a ganância malsã de tantos interrompeu o sentido de existir como bicho civilizado. Aos outros bichos, tudo foi dado saber, não se ensina passarinho a fazer ninho, diferente do bicho homem que carece de reinventar a vida todo santo dia, e não imprime no sangue o aprendizado de uma vida. A cada novo rebento um novo recomeço. Poucos da raça humana tem real pendor de reinventar a vida diária, de criar e legar algo de sublime a ser continuado. Mas como seria viável uma espécie que investe contra a natureza que a gerou e massacra seus protetores? O dever de uma espécie inteira, fora missão de apenas dois deles. Testamento. “Somos dois, mas precisávamos ser muitos mais”, foi a última reflexão e o derradeiro desejo dos parceiros em despedida da consciência, enquanto eram convertidos em animais selvagens. Com orgulho de morrer homem e renascer bicho encantado, adentraram a densidade da mata para viver a paz que o homem não vive e não deixa viver.
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