Em seu conto escrito para o Blog da SBPRP, a psicanalista Silvana Vassimon nos instiga com o mistério que envolve a “mulher do guarda-chuva”. O gênero literário do realismo fantástico, “O Estranho” de Freud e memórias de infância compõem o caldo que inspirou a autora para a criação.

“Todo dia, por volta das sete da noite, ela passava. Infalivelmente. Vinha toda vestida de preto, dos pés à cabeça. Infalivelmente. Vinha com passos cuidadosos, mas não lentos. No braço esquerdo trazia a bolsa pendurada, na mão direita trazia o guarda-chuva. Todo preto. Infalivelmente. Nunca vi seu rosto.”

A MULHER DO GUARDA-CHUVA

por Silvana Vassimon

*A pintura foi feita pelo membro filiado Victor Malerba.

Todo dia, por volta das sete da noite, ela passava. Infalivelmente. Vinha toda vestida de preto, dos pés à cabeça. Infalivelmente. Vinha com passos cuidadosos, mas não lentos. No braço esquerdo trazia a bolsa pendurada, na mão direita trazia o guarda-chuva. Todo preto. Infalivelmente. Nunca vi seu rosto.

Todos sabiam para onde ela ia. Caminhava para o cinema, um dos dois únicos na cidade. Não importava o filme. Podia ver a exibição de um filme repetidas vezes. Todo dia, lá estava ela. Havia uma certa dignidade no cultivo da solidão, e havia um mistério; passava envolta em um mistério.

Foi assim, com aquela viuvez anunciada a cada passo, que ela ficou conhecida como “a mulher do guarda-chuva”. Fazia parte da cidade, como a igreja matriz ou a praça central.

Não sabia onde morava, mas devia ser lá para os lados do bairro simples, afastado do centro alguns quarteirões. Nunca pensei em descobrir, mas ouvia coisas!

Diziam que a casa tinha porta e janelas que davam para a rua. E um quintal pequeno nos fundos, com mandiocas e jabuticabeira. De resto, silêncio e penumbra. Diziam que morava só, ninguém entrava, ninguém saía: exceto ela e seu guarda-chuva.

Mas um vizinho, atento à noite, contava que vira luzes radiantes que vazavam pelas frestas das janelas. Brilho, brilho e mais brilho!!! Tinha certeza de muita luz lá dentro. Um outro jurava, de pés juntos, que havia escutado sons no meio da noite: música romântica e vozes suaves trocando juras de amor! Mas também havia a criançada que, na chegada dos parques, contava ter ouvido risos e vozes alegres de crianças saltitantes. Alguns duvidavam, outros garantiam.

Uma noite, a vizinha acordou incomodada: o que era aquilo??? Das paredes da casa da mulher do guarda-chuva vinha um barulho estranho; tropel de cavalos em disparada, vozes grosseiras de homens praguejando. Tiros??? De medo, com tanta estranheza, voltou e se enfiou nos lençóis.

O vendedor de quebra-queixo morava por lá. Não se fez de rogado: garantiu que quando ela entrava em casa o guarda-chuva se abria e dele saiam raios multicoloridos, prateados e dourados que, em êxtase, enchiam a casa de luz. Tudo ali resplandecia na escuridão da noite. Disse ele, e era alguém de se acreditar, que já ouvira barulho de bicho; bicho brabo, da floresta, tipo elefante, leão, esses bichos… Não sabia dizer mais nada, a não ser que dava medo.

Com o tempo, fiquei sabendo que já haviam escutado sons de orquestra em faceira melodia que escapava pelos poros das paredes. Passos cadenciados prá lá e prá cá anunciavam uma valsa. Ou seria um bolero?

Contavam que uma noite ouviram gritos horríveis: estrondos e coisas se quebrando. Terror absoluto; muito grande mistério acontecia ali! Nem quiseram imaginar o que poderia ser. Mas imaginaram! E imaginaram cenas de meter medo em gente de coragem!

É bem verdade que também ouvi a moça do armazém contar que, de fato, o guarda-chuva era intrigante e nunca alguém pusera as mãos nele. Dizia ela que tinha algo estranho naquela pretidão maciça do guarda-chuva onde o silêncio, a dor e a saudade se escondiam. Deu certeza de que ela mesma, em carne e osso, já ouvira lamentos sussurrados e vira vultos se movimentando junto à porta de entrada da casa no breu da madrugada.

De noitinha, pouco antes das sete horas, ela passava. Se voltava, nunca vi. Talvez não fosse por ali, talvez não voltasse nunca…

Um dia, pouco antes das sete da noite, ela não passou. “Não veio?” “Não, nada”. Dia seguinte, a mesma coisa: “Não veio!” “Ainda não?” “Não, não veio.” Estaria doente? Teria morrido? Estava velha, já era hora? Quem sabe mudou-se para outra cidade? Teria sido atropelada? Onde estaria seu guarda-chuva?

Assim foram os restos dos dias: ela não passou mais. Nunca mais. Nunca mais! A vida seguiu em frente; só o tempo ficou diferente, como se houvesse um relógio mágico que pulasse pedaços de horas e tivesse, sem piedade, apagado o tempo antes das sete da noite.

Bateu chuva, bateu sol…muitos dias se passaram quando, cedinho – ainda madrugava -, o padeiro cortou a praça central indo fazer o pão da cidade, na esquina de sempre. Junto à fonte luminosa, que ainda jorrava chuva colorida, encontrou, caído no chão, um guarda-chuva, todo preto.

Fomo ver: assombrados, curiosos, inquietos e desconfiados, ficamos em volta, especulando, imaginando, perguntando, inventado histórias e explicações. Chegavam uns, saíam outros, ninguém ousava tocá-lo. Desfalecido e entregue, jazia no chão como um brinquedo que foi muito brincado.

No seu cabo de brilho opaco, uma bela borboleta azul dançava suave suas asas ao som de uma orquestra invisível. Plena, soberana, doce testemunha de sonhos sonhados no esplendor da solidão.  

E isto todo mundo viu!

Silvana Vassimon

01/03/2022