A seção Ateliê do Pensar do Blog da SBPRP nos convoca e provoca, através das palavras e da animação de autoria do Membro Filiado Victor Malerba, a indagarmos, conforme o título escolhido pelo autor: onde habitam?

Convoco Abraxes, entidade que é deus e demônio ao mesmo tempo. Convoco os bichos venenosos. Convoco as substâncias amorfas da mente. Por que romper a agradabilidade com um pontiagudo caco de vidro? Por que cortar a carne com um canto torto, feito faca? Por que furar um alto falante de modo a produzir um som distorcido, cortante? Acho que perguntar o “porquê” já é começar de um jeito torto essa dança… Então vamos voltar um pouquinho.
Quando você era criança, gostava de mexer com coisas gosmentas e divertidas, físicas e imaginárias, que logo aprendeu que se chamam “caca”. Mas não importava, porque você via na TV o Timão e o Pumba comendo insetos, dizendo “viscoso, mas gostoso!”
Se sujar de terra, de lama, de cocô, era tão natural quanto tomar um copo d’água. Você brincava com tudo isso e não havia condenação, porque era tudo uma brincadeira.
Aos poucos, mas ao mesmo tempo de maneira brutal, você foi se tornando um homem civilizado, aprendeu a usar roupa social e a pedir desculpas por reagir, sentir e ser a seu próprio modo um ser humano. Aprendeu a se higienizar física e emocionalmente. Nada mais civilizado do que ser lenta e brutalmente amputado da própria espontaneidade. Dirão que é necessário. E é.
Você aprendeu a usar o status social/ financeiro/ intelectual/ cultural/ léxico para se blindar da humilhação e da condenação, o bullying existencial que faz parte da formação do que chamamos de caráter.
Com sorte, isso te ajudou a conquistar muitas coisas importantíssimas: notas suficientes pra passar de ano, um emprego, dinheiro pra pagar as contas e poder minimamente sobreviver. Você se tornou bem sucedido, conseguiu se blindar para o bullying e a humilhação que o ameaçavam constantemente.
Até parece que a lama desapareceu para sempre. Você quer acreditar nisso. É possível viver uma vida limpa, se você se esforçar muito. Eles te prometeram isso. Você vive muito tempo, talvez anos, acreditando que se higienizou. Tornou-se um homem maduro, higiênico. Você venceu na vida.
Mas um dia você vê um rato na rua. Ele veio daquele terreno baldio vizinho. No outro dia, ele está no seu sapato. Você o mata brutalmente e acredita se livrar do problema de vez. Então os ratos enchem a sua piscina e não há mais o que fazer com eles. A velha estratégia de matá-los um a um, com um chinelo ou uma vassoura, já não serve mais.
A sua crença em um mundo limpo — você percebe que ela não corresponde aos fatos. Tudo flui e a poeira que você jogou pra debaixo do tapete pede a sua atenção. Urge pelo seu olfato. Demanda o seu paladar. Você acha que está delirando, que está louco. Mas você só não está querendo enxergar o que você está vendo. Não te ensinaram isso na escola: um delírio é um sonho que ainda não foi escutado o suficiente. A sua vida é a única professora possível, se você se permitir cheirar, tocar, escutar: não a sua sujeira, mas aquilo que é vivo e você aprendeu a enxergar como “caca”.
por Victor Malerba
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