Fruto de uma fértil parceria com os colegas da nossa Sociedade, o Blog apresenta seu último trabalho deste ano. E não haveria lugar melhor para terminarmos tudo isso: no divã! Este objeto, que mais parece uma entidade psicanalítica, inspirou a Psicanalista Sandra Nunes Caseiro a escrever e sua escrita inspirou o nosso colega e Membro Filiado Luciano Bonfante a interpretar seu texto. Agradecemos de coração ao músico José Terra que inspirado pela narrativa de seu amigo Luciano musicou toda esta obra! Também aos colegas da Sociedade que generosamente colaboraram com fotos dos seus divãs, nosso muito obrigado!
Com vocês, “Feche seus olhos, de que cor é seu divã?”
Obs: a experiência pode ser enriquecida se assistida pelo notebook.
Feche seus olhos
Feche seus olhos. Pense no seu divã. De qual cor ele é? Onde estava a imagem do seu divã antes de ler a pergunta?
Onde estava? Foi nessa trilha que Freud se embrenhou a mais de 100 anos!
A palavra divã vem do Turco Divan, do árabe diwan e do Persa devan. Seu significado abrange a espécie de sofá, sem braços e sem encosto que guarnecia a sala do conselho turco, ou a sala do conselho do sultão rodeada de almofadões; ainda, significa maço de folhas escritas ou coleção de poesias árabes. Os divãs se popularizaram no ocidente em meados do século XVIII fazendo parte da mobília das casas e depois dos bares e cafés.
Freud queria um móvel que deixasse o analisando sem contato visual com o analista e, também, potencializasse seu “estado de relaxamento”. Pensou nessas funções para o móvel. Mas por que o divã e não um sofá comum ou uma cama? Pelo layout e estética da peça, que não se iguala à cama que pertence ao privado de um quarto e, não tendo braços ou encosto, facilita visualizar o analisando?
De qualquer forma, todos os sentidos da palavra remetem a algo de aconchegante e íntimo; algo que é acolhido, cuidado, talvez em sigilo, talvez publicado, partilhado por duas ou mais pessoas.
Temos notícias da Psicanálise fora do divã, nos diversos trabalhos realizados longe das salas dos consultórios que se orientam pelo corpo de conhecimento da psicanálise. E sobre os divãs fora dos consultórios? Infinitos!
Pensei em alguns eternamente especiais para quem os experimentou. A cama dos avós coberta com uma colcha de retalhos coloridos unidos por pontos de crochê, um universo seguro, sem exigências ou críticas. A cama dos pais num domingo de manhã, onde vale qualquer coisa, de cócegas a conversas aleatórias, sempre com risos espontâneos de som de fundo. O sofá e cadeiras da sala de Tv, acompanhados de pipocas que podem se espalhar pelo chão sem provocarem uma ofensa. A grama que acomoda os corpinhos que olham curiosamente para a forma das nuvens no céu procurando bichos brancos, coisas brancas. O colo da mãe que defere a solicitação do filho caçula de três anos em lágrimas de que da próxima vez que ele e o irmão nascerem, o deixará nascer primeiro. A tia que abraça prometendo energicamente que brigará
com o Papai Noel por não ter trazido o brinquedo desejado. Vivências de aconchego, de ser respeitado, de fazer diferença ser aquele indivíduo específico ali, naquele instante.
No livro Antes do nascer do mundo, de Mia Couto, a tranquilidade e o orgulho embebiam a alma de Mwanito quando era reconhecido por Silvestre, seu pai, como o melhor afinador de silêncios: ele tornava-se especial! Silvestre inventou um único mundo, o seu, por não aceitar deixar mudar o que já havia mudado.
Lembrei-me da série After Life, e dos encontros sentados diante das lápides de seus amados, quanta revolta e amargura de Ricky comunicadas para Anne, que o ouve com a calma e compreensão de quem conhece em qual ponto do trajeto de luto ele está.
O fluir da vida tem um único sentido, do presente para o futuro. Mas a bússola da mente dos humanos carece de magnetismo. Com dificuldade sinaliza o agora, tantas vezes emperra no passado, assim, raramente intuindo o futuro. Como a mulher de Ló, que ao olhar para trás, torna-se uma estátua de sal.
Talvez seja essa a maior função de todos os divãs: dar água a tudo o que floresce e dissolver o que se petrifica. Magnetizar a agulha de nossas bússolas. Movimentá-la do choro ao riso, do riso ao choro. Movimentá-la.
Seja numa sessão de psicanálise, num momento íntimo, numa espera, ou num período de lazer, todos temos memórias de divãs que nos marcaram, e que caminham conosco em nossa jornada. Divã é uma peça feita pelas mãos de humanos, que acolhe criações humanas, fantasmagóricas e paralisantes ou promissoras.
Feche seus olhos. De qual cor é seu divã?
Sandra Nunes Caseiro
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