Que oportunidades e resistências encontramos ao sair de nossos consultórios?

Nessa segunda etapa da entrevista com a Dra. Maria Bernadete Amêndola, ampliamos o foco, partindo de um diálogo sobre as relações entre a Universidade e a Psicanálise para as relações entre analistas e a comunidade em geral.

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Conversamos sobre temas variados, como: as parcerias entre a Universidade e a Sociedade de Psicanálise, a relevância do treino em pesquisa para pesquisadores e, também, para psicanalistas, a pertinência do estudo da história da psicanálise e as oportunidades e resistências vividas cotidianamente pelos analistas que se envolvem com trabalhos sociais.

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Dra. Maria Bernadete Amêndola

LUIZ TOLEDO: Você esteve à frente de projetos da Sociedade (SBPRP) que visavam aproximar a psicanálise da comunidade. Penso que, quando falamos a esse respeito, estamos conversando sobre a importância da psicanálise não se encastelar, dela encontrar pontos de encontro e debate com a cultura, com as pessoas, com quem não é da área. O que você pode contar sobre essas experiências?

DRA. MARIA BERNADETE AMÊNDOLA: Eu sempre gostei de estar à frente de psicanálise e comunidade em diferentes comissões, diferentes projetos da Sociedade de Psicanálise. Eu acho que me afino muito com a ideia de que a psicanálise necessita ter esse diálogo com a comunidade. Ela precisa estar inserida na comunidade. Não é só para levar o conhecimento psicanalítico para a comunidade, seja em eventos psicanalíticos, ou nas várias instâncias da comunidade, como escolas, creches, postos de saúde… nas mais diferentes áreas que a gente possa pensar. Lembro, até, uma vez que a (analista) Myriam Vianna fez um grupo com arquitetos da cidade. Então, são várias as possibilidades de que a psicanálise possa pensar o funcionamento dessas instituições que estão, de alguma forma, ligadas a pessoas, que tratam de pessoas, que prestam serviços a pessoas. A psicanálise tem muito a dizer sobre isso e tem muito a receber também. Eu acho tão importante que a gente veja e compreenda essa outra parte, essa reciprocidade, porque nós ganhamos muito, como psicanalistas, quando estamos em contato com a comunidade, com a prestação de serviços, na área da saúde, principalmente, para a comunidade. Nós crescemos muito, compreendemos muito. Por exemplo, quando eu vou a escolas e converso com os professores, tenho a noção de qual é o impacto de estar numa sala de aula com 30, 40 crianças, adolescentes, pré-adolescentes. Aquilo tudo despertando muitas emoções nos professores… Eu falei de crianças e, particularmente, na escola pré-primária isto é muito forte, porque a criança é um ser com o funcionamento muito primitivo e que, assim sendo, despertam emoções primitivas nas pessoas que estão com elas. E isso tudo fica não pensado, não conversado, porque mesmo sabendo o que se deve fazer para trabalhar com as crianças, o que deve ser oferecido para que eles cresçam… acontecem fenômenos de outra ordem. Identificações projetivas maciças [Conceito desenvolvido por Melanie Klein em 1946, no qual o paciente deposita emoções em seu analista, invadindo-o emocionalmente], para citar apenas um, entre professores e alunos. E isso não é conversado, e o professor sofre porque sentiu raiva ou teve vontade de sair da sala de aula, ou de mandar alguém para fora e não sabe exatamente o porquê disso ter acontecido. Então, acho a leitura psicanalítica desses fenômenos em sala de aula, ou em qualquer outro lugar em que pessoas se relacionam, sempre muito útil: reveladora para as pessoas envolvidas.

Agora, por outro lado, eu aprendo muito quando vou à escola porque vejo os fenômenos de grupo, as necessidades… Fenômenos de grupos com os quais eu não lido dentro do meu consultório, a não ser de uma forma indireta, quando as pessoas me contam o que estão passando onde trabalham, nas suas relações. Então, além dos fenômenos de grupo, tenho a oportunidade de estar em contato com as angústias, as emoções, as experiências das pessoas que têm um nível socioeconômico que não permite que elas estejam nos nossos consultórios. Então, quando você vai à comunidade, você também passa a ter experiência a respeito de como é essa vida emocional, as questões psíquicas, de pessoas que têm suas carências, dificuldades, e que estão desamparados pelos órgãos governamentais. Isso foi tão útil para mim na universidade! Quando eu atendia crianças, Luiz Celso, atendíamos no estágio de Ludoterapia, propúnhamos três sessões semanais e os pais topavam. Só que eles não tinham dinheiro para pegar o ônibus para ir para a faculdade. Era gratuito o serviço de psicoterapia, mas eles não tinham condição de pagar o transporte. Aí você precisava acionar o serviço social para conseguir uma van, uma passagem gratuita. Era uma complicação, uma burocracia. Então você percebe que o acesso a esse tipo de serviço, que é um serviço absolutamente essencial… o ser humano precisa do serviço psicanalítico, precisa de alguém que entenda deste funcionamento, deste ser, de todas as questões internas que temos. E infelizmente muitas pessoas não tem acesso. O nosso contato com a comunidade vai nos ajudar a entender isso e acrescer aos nossos conhecimentos teóricos e técnicos. Então acho que só faz bem, para um lado e para o outro. E penso também, Luiz Celso, que os colegas da Sociedade de Psicanálise, que se comprometem com trabalhos com a comunidade, eles estão acrescentando e enriquecendo sua formação como psicanalistas, pelo o que acabei de dizer. Acho que isso devia ser algo mais incentivado dentro da Sociedade: que cada um de nós passasse pelo menos por um tipo de trabalho com a comunidade, porque isso é formador, importantíssimo para a formação. Amplia horizontes.

Outra coisa que eu queria dizer a respeito de psicanálise e comunidade: todas as vezes em que eu estive em contato com algum segmento da comunidade, me senti muito bem recebida. Em um primeiro momento: “nossa, se é alguém que vem fazer uma leitura psicanalítica do nosso serviço, das nossas crianças, das relações interpessoais, então é muito bem-vindo”. No entanto, quando começamos a ler e a trazer este tipo de leitura, as resistências pulam na nossa frente. Isso eu acho tão interessante… Na hora em que você está ali, presente, é igualzinho a quando você está sentado na poltrona e o paciente no divã. Ele quer análise, está pagando, está pagando caro. E ele resiste à análise! Eis aí a sabedoria do velho Freud: haverá sempre resistência à psicanálise, porque nós estamos lidando com o inconsciente, que é para ficar reprimido (pensando num sentido mais freudiano do inconsciente).

Então, você está lidando com a “imatéria”, como diz o Cesário, você está mexendo com um campo que tem o seu próprio funcionamento, que vai resistir à sua entrada. Então não vamos ser ingênuos e românticos em relação à psicanálise e comunidade, supondo que seremos sempre muito bem recebidos. Em um primeiro momento, sim. Na medida em que o trabalho prossegue, você encontrará as resistências e aí trabalhará também com elas, como a gente sabe trabalhar no consultório. Nem sempre é possível, é um outro setting, você não pode ficar fazendo interpretações. As resistências estarão presentes, muito presentes no processo, não é?

LUIZ: Nas ocasiões em que a Sociedade daqui buscou parcerias com a comunidade, para eventos, para vinda de colegas, por exemplo como a gente vai ter esse ano [A SBPRP irá sediar em 2017 um Pré-Congresso sobre Bion (com a participação de colegas estrangeiros) e um Congresso Internacional em 2018], ou mesmo para de participar de projetos da universidade, você sentiu que foi possível estabelecer boas relações? Como foi a evolução dessas relações ao longo do tempo?

BERNADETE: Eu sinto que há uma interação, inclusive uma busca. Obviamente, tem as pessoas em particular. Então, eu já fui chamada várias vezes para dar aula, palestras na graduação em algumas disciplinas como Psicologia do Desenvolvimento, Teorias e Técnicas Psicoterápicas. Então, colegas chamam alguém da nossa Sociedade para palestra, alguma aula. E nós temos uma parceria que eu acho que ainda existe. Eu já fiz parte dela. São psicanalistas da Sociedade de Ribeirão que supervisionam quintoanistas da Faculdade de Psicologia da USP. É uma reunião semanal, com supervisão, normalmente 4 a 5 alunos que trazem os casos e a gente discute, como um seminário clínico. Então, essa parceria existe – acredito – há muitos anos, com o professor Manoel. O professor Manoel [Dr. Manoel Antonio dos Santos, docente da FFCLRP-USP] está sempre muito atento aos eventos da Sociedade. Ele participa do Terças [Terças na Sociedade é um evento voltado ao debate de temas psicanalíticos com jovens universitários promovido pela SBPRP], está sempre presente. Quando nós fizemos a Bienal, lá no anfiteatro da Faculdade de Direito, ele foi fundamental para estabelecer a relação entre a Sociedade e a Universidade. Então, neste momento, eu não sinto que exista qualquer tipo de tensão entre a Faculdade de Psicologia e a Sociedade de Psicanálise.

LUIZ: Falando sobre a Universidade e o que ela pode nos oferecer, penso que o treino em pesquisa e método (como a gente aprende na Universidade) pode ser útil para psicanalistas, como algo que, dentre outras coisas, pode ajudar a evitar idealizações e radicalismos. Eu queria ouvir você a esse respeito. Como você vê o impacto da sua experiência de treino em pesquisa, método e escrita nas suas atividades como analista, na sua relação com a teoria e técnica analítica?

BERNADETE: Eu acho que só acrescentou, só me enriqueceu. Eu não sinto, pessoalmente – é uma experiência pessoal –, eu não sinto que tenha criado em mim um conflito. Eu fiz mestrado, doutorado, fiz dissertação, fiz tese, aprendi o método de pesquisa e, quando cheguei à psicanálise, isso não ficou perdido. Ou, até mesmo, o contrário, algo como: ‘isto não deve ser feito’. Como se tivesse um aprendizado que teria sido inútil porque agora, em psicanálise, eu percebo que não é assim que se estuda o ser humano. Eu acho, sim, que não é dessa forma, com método científico e comparação entre grupos e estatísticas que estudamos o ser humano. Aprendi isto na psicanálise. Mas o rigor com que eu aprendi a pensar e a analisar dados, que tive no treinamento como pesquisadora para escrever esses trabalhos todos, isso tudo foi muito útil. Então é algo, Luiz Celso, que fica em mim como uma forma de pensar e me ajuda no sentido do rigor, da investigação: ‘mas é isso mesmo? Por que que é isso? Quem disse que é isso?’ Você falou de idealização. Eu acho que a pesquisa científica nos ajuda muito a partir da ideia de que as coisas não são como parecem ser: ‘vamos ver se é?’. Então isso combina – psicanálise com pesquisa ou com metodologia científica –, combina muito. Eu sempre brinco que a gente parte (na pesquisa científica) da hipótese zero, não é? Você deve se lembrar do que se trata: ‘então, parte-se do princípio de que é tudo igual, vamos ver se tem diferenças’. Então, ainda que sejam campos totalmente diferentes, a pesquisa em psicanálise ou a pesquisa científica têm essa indagação primeira: ‘o que é, o que estou vendo? Não, pode não ser isso, vamos ver, vamos investigar’. Só que a investigação é absolutamente diferente da psicanálise. A singularidade, a peculiaridade: a investigação sobre cada um se superpõe a qualquer investigação de grupos de sujeitos, de comparação de sujeitos. Até eu acho bonito que não apareça em psicanálise esse termo – ‘sujeitos’-, porque o sujeito… ele costuma não ter uma identidade própria. Então ‘o sujeito da pesquisa’, ‘eu trabalhei com dez sujeitos, com vinte, trinta… Em psicanálise, você tem o caso A, o caso B, o senhor F, a senhora N… Então, você tem aquela personalidade específica. A psicanálise foi construída assim e a teoria cresceu e se aprofundou; este método de investigação psicanalítica é muito útil, fértil, muito produtivo, produz conhecimento. Eu não sei se dá para a gente dizer: ‘produz ciência’. Porque a ciência tem, como diz o Bion, uma nuvem de associações muito positivista, o que não combina com psicanálise. Eu ouvi uma vez, Luiz Celso, o João Frayse Pereira [Psicanalista da SBPSP e Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP/SP], falando a respeito de psicanálise e arte, em uma palestra na Sociedade de Psicanálise de São Paulo. Ele disse que se imaginarmos uma reta e, em uma ponta a ciência, na outra ponta, a arte, a psicanálise não estaria mais perto da ciência, ou mais perto da arte, nessa linha. Ela seria uma outra coisa, ela é um outro jeito de investigar o ser humano, a personalidade humana, o funcionamento. Eu concordo com essa ideia. Acho que não dá para dizer ‘psicanálise é arte’ ou ‘se aproxima da arte’, ou ‘a psicanálise é ciência’ ou ‘se aproxima da ciência’. Freud e os seus seguidores criaram um outro método de investigação da mente e Bion ampliou tremendamente isso, transformou paradigmas. Eu acho que temos avançado muito na investigação do ser humano. Assim, fico orgulhosa da psicanálise, entusiasmada com esse jeito de investigar. Então, eu vejo que o interesse pela investigação, o interesse pela pesquisa foi despertado em mim via método científico, ainda que eu não o use dentro dos seus parâmetros, continua dentro de mim o gosto pela investigação, pela pesquisa; agora, com outro método.

Só mais uma coisa a respeito disso, Luiz Celso, o rigor em relação aos conceitos – eu acho interessante isso. A pesquisa, o treino em metodologia científica também traz esse tipo de visão, de você ter uma noção do que é mesmo que você está falando; se você fala de personalidade, você tá ancorado em qual teoria? É personalidade a partir do quê? De quem? Quem falou? Com o que é que você está afinado?

LUIZ: Pensando nisso, sobre a questão do conceito, penso que é uma coisa importante. A gente precisa ter esse cuidado ao escrever, e isso é um treino relevante. Como você vê o estudo da história da psicanálise ou o interesse pela história da psicanálise na formação do analista? Como algo que pode ser, ou não, útil para a formação?

BERNADETE: Eu acho que é importante. Aliás, acho que história de, seja da psicanálise, seja, por exemplo, de engenharia, de medicina, de farmácia….

Eu acho que história de… é importantíssimo porque a gente pode localizar, perceber movimentos revolucionários, de mudanças de paradigmas, de movimentos… a evolução de cada uma das áreas do conhecimento. Então, eu acho deveria existir na Sociedade de Psicanálise um seminário sobre história da psicanálise. Eu penso, Luiz Celso, que, às vezes, as pessoas, quando a gente pensa em curriculum… Existem tantos textos a serem estudados de Freud e Melanie Klein, Bion, Winnicott, Meltzer… que não cabe, seria uma formação muito extensa. Lembrando que nós temos dois períodos de aulas semanais, os seminários teóricos, de três horas. Quando fazemos graduação, fazemos diariamente, 8 horas, 6 horas, mas em período integral, seja o pessoal que vem da Medicina, seja quem vem da Psicologia. Então, eu entendo que não é prioridade, cada um de nós pode encontrar textos da história da psicanálise, mas se você perguntar: é importante? É. Houve um ano em que, naquele período em que o pessoal faz análise didática (o ano de análise didática antes de entrar para os seminários), nesse período houve alguns seminários de história de psicanálise. Acredito que tenha sido na gestão da Cida [Dra. Maria Aparecida Sidericoudes, analista didata da SBPRP], quando ela era diretora do instituto. Acho interessante, porque é uma boa ideia.

por Sr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP