É possível ensinar Psicanálise na Universidade? Como? Com quais propósitos?

Freud debruçou-se sobre essas questões no início do século passado, quando a Psicanálise ainda era, como ele definiu, uma “jovem ciência”. Para ele, as especificidades da formação psicanalítica não cabiam nos moldes da estrutura curricular universitária, o que não impediria que seus conceitos pudessem ser estudados, desenvolvidos e articulados com a cultura e com as demais ciências humanas – o que, certamente, poderia acontecer em ambientes universitários, com benefícios para analistas e acadêmicos.

No Brasil, o primeiro trabalho sobre Psicanálise escrito no âmbito universitário data de 1914. De lá para cá, a Psicanálise passou a ser lida, debatida, ensinada, criticada e enaltecida nos Departamentos das Faculdades de Medicina, Psicologia, Filosofia e outros. A variedade e qualidade dos trabalhos sobre Psicanálise produzidos no Brasil atestam o quão fecunda pode ser a relação entre as duas instituições. As paixões que nossa “jovem ciência” despertou no ambiente universitário ao longo do tempo demonstram que o impacto ocasionado pelos trabalhos de Freud, Klein, Bion, Lacan, Ferenczi, Kohut e outros não arrefeceu. Pelo contrário, cresceu e evoluiu.

No início de março, conversei com a Dra. Maria Bernadete Amêndola sobre essa e outras questões. Bernadete foi docente da USP de Ribeirão Preto por mais de duas décadas, é mestre e doutora em Psicologia Escolar pela USP/São Paulo e se interessou pela Psicanálise quando estava na Universidade. Realizou um longo e bem sucedido percurso em ambas as instituições, tornando-se uma referência no que diz respeito à Psicanálise e, também, Educação em Ribeirão e região. Psicanalista e professora renomada e experiente, ela viveu e trabalhou intensamente na Universidade de São Paulo e na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto.

Dra. Maria Bernadete Amêndola

Nossa conversa foi interessante e rica, gerando um material que merece ser apresentado em duas edições do Blog. Inicialmente, ela aborda questões relativas à Psicanálise e Universidade. Posteriormente, aborda questões sobre Psicanálise e Comunidade.

Aproveitem a ótima companhia da Dra. Bernadete. Boa leitura!

LUIZ TOLEDO: Bernadete, eu queria que você contasse um pouco como foi a sua chegada à Psicanálise, como é que a Psicanálise entrou na sua vida e como é que você se interessou por ela.

DRA. MARIA BERNADETE AMÊNDOLA: Essa sua pergunta tem relação direta com o tema que foi proposto para conversarmos, sobre Psicanálise e Universidade. Foi na graduação em Psicologia, que cursei no Instituto de Psicologia da USP de São Paulo, que eu conheci a Psicanálise, por intermédio de bons professores de Psicanálise. Isso faz muita diferença e acho que dá uma ideia dessa importância da relação Psicanálise e Universidade. Conheci as professoras Amina Maggi, Vera Stela Telles, Maria Olímpia França, conhecedoras e entusiastas da teoria psicanalítica. Foram pessoas que lançaram em mim a semente primeira da Psicanálise. Lembrei-me, falando disso, que nós fizemos um dia um evento intitulado “Café com fundadores”, aqui na SBPRP. Neste evento o Dr. Junqueira contou como se interessou pela Psicanálise. Ele disse que ouviu uma aula sobre Complexo de Édipo e pensou: “Isso tem a ver comigo”. Eu acho que a Psicanálise tem essa espécie de poder de, na medida em que você entra em contato com a teoria psicanalítica, você vai se reconhecendo, identificando fantasias e mecanismos que são seus. Quando você escuta falar de inconsciente e de sonhos, percebe que está sendo nomeado aquele “algo” que sabemos existir, para mais além da consciência. Mesmo que você não conheça nada de Psicanálise, de algum jeito, sabe disso. Então eu acho que é fácil semear uma vez que existe um campo fértil para a semente brotar. Digamos que é esse campo de autopercepção, autoconhecimento, que é o que Bion chama de função psicanalítica da personalidade, que todos temos. Você não precisa ser psicanalista ou estudar Psicanálise, mas é esse contato consigo mesmo. Então foi na Universidade que eu me interessei por Psicanálise.

Lembro-me também que uma das professoras, que é a Vera Stela, pedia que os alunos colocassem na lousa a história produzida por uma paciente no teste CAT (Children Apperception Test). Pedia ainda que não tivesse nenhum dado sobre o sexo da criança, a idade, a queixa, nada. E ela ia, por intermédio da análise da história, aproximando-se disto: qual poderia ser a queixa, a idade, o sexo do paciente. Os alunos ficavam estupefatos, surpreendidos positivamente por ver como ela podia tirar a partir do discurso da criança, tantas “revelações”. Eu acho que esse também foi um ponto importante para despertar meu interesse: havia um método por intermédio do qual se pode descobrir o que está encoberto.

Resolvi fazer pós-graduação na área de Psicologia do Desenvolvimento, porque, na graduação, eu me interessei pela teoria de Piaget, que tem a ver com educação e eu sou de família de educadores. Acho que isso é fundamental porque tem tudo a ver com Psicanálise. Nas minhas análises, pude perceber claramente a influência dos meus pais na minha vida profissional, nesse sentido de gosto por educação, gosto por docência, então eu me interessei muito quando estudei a teoria de Piaget do desenvolvimento cognitivo. Consegui uma bolsa de iniciação científica pela Fapesp desde o 3º ano da faculdade. Então 3º, 4º e 5º anos da graduação eu fiz iniciação científica com o Professor Lino de Macedo. E foi natural pensar em fazer pós-graduação tendo ele como orientador. Fiz a pós no Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem. Nesse tempo, o Lino me indicou para ser professora aqui em Ribeirão, no Departamento de Psicologia e Educação da FFCL-USP. E eu devia ter uns 2 anos de Mestrado e perguntaram para ele se indicaria alguém para dar aula de Piaget, de Psicologia Educacional. Ele me indicou. Obviamente eu precisei passar por um concurso, fui uma das candidatas. Foi uma coisa muito, muito importante na minha vida. Para mim é um marco ter dado aula, começar a dar aula aqui, tão cedo.

LUIZ: Você tinha quantos anos?

BERNADETE: Eu tinha 24 anos. Como já disse, comecei a dar aulas na faculdade muito cedo na minha vida profissional. Iniciei ministrando Psicologia Educacional e achei que eu iria por esse caminho. Só que a Psicanálise me interessava muito, e esse interesse me levou a abrir o consultório. Penso agora, que por uma coincidência feliz, não fui contratada com regime de tempo integral e dedicação exclusiva. Eu fui contratada com regime de turno completo, que eram 24 horas semanais. Com toda a orientação que eu tive na graduação, sobre Psicanálise e clínica, eu sabia que precisava fazer análise pessoal e supervisão. Iniciei então minha análise pessoal com o Dr. David Azoubel e a supervisão com a Suad Haddad de Andrade, que me foram indicados por meus professores de São Paulo. Eu fazia também grupos de estudo. Fiz com a Lenise inicialmente, depois com o Dr. Junqueira. Então fui crescendo. Meu interesse foi crescendo por Psicanálise, pela própria prática, pela discussão em grupos, pelos estudos que eu fazia. Me encantei com os colegas daqui, que me receberam muito bem. Mas eu acho que o principal – o que faz a semente germinar – é você mesmo. Não é bem o interesse pela teoria no sentido de “eu vou aprender isto para trabalhar”; é “isto tem a ver comigo, identifico o que está sendo descrito na teoria, dentro de mim”.

LUIZ: Como você via a relação entre a Universidade e a Psicanálise na época em que cursou a Universidade? Havia uma interação, havia analistas circulando pela USP ou pelas outras Universidades?

BERNADETE: Em nenhum momento da minha graduação senti ou percebi que havia alguma tensão, algum conflito entre Psicanálise e Universidade. Para mim, a Psicanálise era aceita dentro da Universidade. As minhas professoras não traziam essa notícia de que a Psicanálise era de algum jeito rejeitada dentro da Universidade, nunca ouvi a respeito disso. Ao contrário, eu me lembro que por volta de 1975, a Maria Olímpia França, que era nossa professora de Psicanálise, falou sobre as conferências que Bion estava fazendo na SBPSP. “Está sendo algo revolucionário”, ela disse. Eu percebia nela um entusiasmo de quem estava ouvindo ideias novas. Isso nos tocava muito como alunos. Mas, o Bion não fazia parte da grade curricular, não existiam ainda profissionais ou professores dentro da Universidade que dominavam ou estudavam de algum jeito a teoria bioniana. Nunca tive Bion na faculdade. Tive Freud, Melanie Klein, Winnicott, eu lembro de ter estudado bastante e… mal eu sabia que tipo de revolução que estava começando ali, na mente de cada um, depois dentro da SBPSP, com a chegada de Bion…

Passamos para a minha experiência como docente na Universidade. Como eu disse, comecei a dar aulas de Psicologia educacional. Eu não dava aula de clínica. Na medida em que eu fui me desenvolvendo em Psicanálise, senti necessidade de fazer formação psicanalítica. Essa foi uma das razões de porquê saí da Universidade: começou a ficar incompatível o meu tempo, os meus horários. Foi uma coisa pessoal, de Bernadete. Aí, então, conforme eu fui avançando na formação psicanalítica, que eu fui estudando mais, me interessando mais, trabalhando mais no consultório, fui ficando cada vez mais uma leitora de Psicanálise e uma interessada em Psicanálise, enquanto Piaget, Educação, Psicologia do Desenvolvimento foi diminuindo dentro de mim. O campo que ocupava mesmo na minha mente, nos meus interesses. E aí, na Universidade, eu pedi para passar da disciplina Psicologia Educacional para alguma disciplina clínica. Eu já oferecia um estágio de Ludoterapia de base analítica junto com a Lucimar, e aí eu pedi para passar para uma disciplina de clínica. O curso que tinha vaga na época era “Teorias e Técnicas Psicoterápicas”, que era uma disciplina de clínica, não de Psicanálise especificamente, mas eu podia trabalhar um pouco disso também. E aí foi um processo muito difícil, sabe, dentro da Universidade. Porque eu sentia que eles achavam que eu tinha feito uma passagem que não interessava à Universidade, que interessava à Bernadete. Porém, do meu ponto de vista, se eu estava estudando mais Psicanálise e aquela teoria e técnica eram importantes no contexto da formação dos alunos da graduação em Psicologia, então eu seria melhor naquilo. Para mim era óbvio, mas eu sentia entre os colegas uma certa tensão, sabe? E é interessante, eu não consigo diferenciar bem o que é uma questão da Universidade com a Psicanálise, ou da Universidade com professores que dão aulas e também tem clínica. Às vezes acho que a coisa está mais localizada aí do que exatamente com Psicanálise.

LUIZ: Mal-estar de quem é professor e tem uma clínica…

BERNADETE: Isso… existem os professores com dedicação exclusiva – estou falando da USP, não tenho experiência com outras Universidades –, eu acho que existem assim, aqueles professores que são vistos como os professores que se empenham ou investem mais na Universidade, são aqueles que têm o regime de dedicação exclusiva. Os outros é como se estivessem ali fazendo um bico, né? Eu não compartilho dessa ideia, mas você respira um certo clima de que, se você tem clínica, você não tem um investimento alto em escrever, em publicação… O que não é verdade.

Você me pergunta como eu vejo isso atualmente. Eu, como não estou dentro da Universidade, não sei, mesmo porque acho que a faculdade muda, dependendo dos docentes que estão nela, especialmente quando estamos na área de humanas e, falando de Psicologia, que é o que eu conheço, acho que, quando estão reunidos docentes que têm determinados interesses, maiores ou menores por essa ou aquela área, a graduação também vai ter aquela identidade dos professores que estão ali reunidos. Penso que hoje, a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto está muito diferente do que era há 20 anos, quando eu saí de lá. Naquela época, a Psicanálise tinha uma força considerável. Havia um professor de personalidade, o Wilson Campos, que conhecia bastante de Psicanálise; a Miriam Viana, que trabalhava com grupos, psicoterapia de grupos e ela tinha uma abordagem bioniana; a Maria Lucimar Fortes Paiva e eu, que dávamos os estágios de Ludoterapia; o Cláudio Rodrigues que era um psicanalista e psiquiatra que trabalhava na Faculdade de Medicina e fazia uma parceria conosco para um estágio de psicoterapia psicanalítica. Quem começou essa parceria foi a Miriam Viana. Ela e o Cláudio se juntaram para que Medicina e Psicologia encampassem um programa de estágio em Psicoterapia Psicanalítica. Eu sentia que a Psicanálise era uma abordagem que tinha espaço na Universidade.

LUIZ: Bem, queria saber se tem alguma coisa que suscitou e que eu não tenha perguntado… E que você acha que valeria a pena a gente conversar.

BERNADETE: Então, a respeito desse tema Psicanálise e Universidade, eu disse ao longo da nossa conversa, mas talvez gostaria de deixar um pouco mais claro. Eu acho que a Psicanálise dentro da Universidade precisa ter seu espaço, independente da vontade dos psicanalistas. Essa é uma vontade de quem está dentro da Universidade porque a Psicanálise é uma área do saber, é uma área a respeito do conhecimento humano. O Leopoldo Nosek veio dar uma palestra sobre Psicanálise e Cultura e disse: “Psicanálise é cultura”. Ou seja, Psicanálise faz parte do corpo da cultura da humanidade. Então, a humanidade já atingiu, com Freud, a ideia a respeito do inconsciente, que isso existe, seja dito da forma que for, tenha a nomeação que tiver, é um patrimônio da humanidade esse conhecimento. Então, a Universidade, seja Psicologia, Sociologia, Filosofia; seja Medicina, Nutrição, Fonoaudiologia… área da saúde ou de humanas, necessita contemplar a Psicanálise como conhecimento sobre o Homem. Trata-se de um patrimônio cultural.

Outro assunto que eu queira dizer a respeito dessa relação Psicanálise e Universidade: Eu acho que é obvio, mas vale reafirmar, que a formação psicanalítica, tal como acontece dentro dos Institutos de Psicanálise, não tem como estar dentro da Universidade. Ela tem tantas especificidades, e a principal delas é a exigência de análise pessoal, e isto não é possível se colocar na Universidade. Então, é uma formação que eu vejo como nível de pós-graduação, de especialização, que você faz depois da graduação. Mesmo porque exige amadurecimento, mínimo, para você fazer essa formação. Eu ouvi a Suad, numa palestra que ela foi dar lá na FFCLRP-USP, para graduandos de Psicologia. Alguém perguntou sobre a frequência de atendimento de quatro sessões semanais. Ela disse: “Para vocês, não! Vocês não podem atender quatro vezes por semana! É muito! É muito contato! Tem que ter condição interna para atender quatro vezes por semana”. Achei aquilo tão verdadeiro… De fato, vamos com calma, porque, para você ter essa intimidade com o paciente, há que se ter muita análise, há que se ter estudo, muita vivência. A formação psicanalítica está destinada a estar fora da Universidade.

por Sr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP