Pintura: Children on the Beach of Guernesey, de Auguste Renoir (fonte: commons.m.wikimedia.org)

Dona Tonica estava morta
Medo da morte quem não tem?
O irmão mais velho faz a aposta:
“Qual de nós tem coragem de olhar a cara da morta?”

Dona Tonica não era uma mulher qualquer,
era aquela vizinha que tinha um grande “papo” no pescoço.
Ave Maria cheia de graça… Já assustava viva, imagina morta!

Menina de 5 anos que nasce em meio a quatro irmãos homens não tem escolha, entra no jogo ou é mandada embora. Menininha!!!
Foi noite de terror, não dormia, não chorava, tinha os olhos esgazeados de medo.

A mãe, coitada, dizia: Menina, olhar a morte de frente não é para qualquer um.
Vai sofrer hoje e a vida inteira com a visão da morte!
Que nada! Guerra de mamonas, campeonato de papagaios, subir em árvores, matar rolinhas com estilingue, eram tantos folguedos de criança que não dava tempo para ninar a dor.

Cresci moleca!

Ainda ouço a mãe em pé ao lado do portão, vara de marmelo na mão, gritando: “passa para dentro Carlos, Heitor, Reinaldo, Maurício e Denise. Venham saborear o que a infância pode lhes dar”.

Viçosa já não era mais nossa. São Paulo é o lugar. Lá terão escolas para deixarem de ser matreiros. Mas… São Paulo para mim era o estrangeiro. Já não era a princesinha da casa em meio à banda de música que anunciara o nascimento. Era a menina com vocabulário estranho. Não podia ser eu mesma.

Foi um tempo “caracachento”, tempo de apagar sorrisos.
O escárnio leva ao silêncio.
Tempos de se esconder atrás dos olhos.
Tinha que aguardar a vida mudar.

Mudei.

por Denise Lopes Rosado Antônio, Psiquiatra – Psicanalista – Membro Efetivo da SBPRP
*poema criado na Oficina Literária coordenada por Marcelino Freire