Hoje inauguramos uma série de posts da seção “Dicas” com um tema central pra lá de interessante: política. Postaremos um texto por semana, então fiquem de olho!
UBU REI: a história de um rei-de-quase-tudo
por Maria Lucimar Fortes Paiva, membro associado da SBPRP
Os recentes acontecimentos políticos em nosso país têm despertado reflexões que aparentemente estavam amortecidas em todos nós. Silenciamos nossos receios, deixados sem registro e nome, talvez por ilusão de que nossas matrizes iniciais poderiam se perpetuar como deuses e heróis. Ingenuamente apostamos (votamos) em “divindades” que, a nosso olhar, representariam em altas instâncias nossos mais profundos desejos e necessidades.
No entanto, temos sido cotidianamente impactados no confronto com realidades que tanto nos surpreendem quanto nos paralisam: corrupção, desmesuras, perversões de leis e instituições, omissões. Incrédulos, suspeitamos que não seja real o que de fato é.
A Psicanálise, assim como outros olhares de busca de entendimentos, tem sido tocada pela necessidade de atentar para esses fenômenos que têm nos invadido em diferentes momentos.
O olhar psicanalítico possível se dirige, então, ao fenômeno social da corrupção, da omissão, da transgressão. Não se poderia aqui considerar a pessoa que corrompe ou é corrompida, como analisa Minerbo (2007) em artigo sobre o tema. As questões sobre “O que é a corrupção?”, “O que ela corrompe?”, e “Segundo qual lógica?” são questões das quais a Psicanálise pode se ocupar, segundo essa autora. Sob o susto, ainda, penso também em qual assoalho ela tem se assentado para eclodir em tão violenta e paralisante expressão?
Passeando por minhas inquietudes, me deparo com a história de Ubu Rei.
Ubu Rei é uma peça teatral que se encontra em cartaz no Teatro Sesc-Pinheiros até o final desse mês de junho (25/06/2017), protagonizada por Marco Nanini e Rosi Campos. Foi reescrita em 1896 por Alfred Jarry, dramaturgo francês, que a teria escrito inicialmente com amigos de liceu, em 1888, para satirizar um professor em seus aspectos mais grotescos e desumanos. Achei essa montagem muito interessante por representar muito do que vivemos em nossos dias, e por possibilitar reflexões sobre um tema tão antigo quanto atual. Porque é parte da natureza humana mais íntima.
Essa peça conta a história de Ubu, um ser monstruoso, estúpido, que é incitado por Mãe-Ubu, sua mulher, a tomar o trono de polônia (lugar nenhum). Para isso, assassina o Rei Venceslau e toma posse do reino. Ubu exerce um poder despótico e cruel, impõe uma política tirânica aos súditos. Assim, logo se torna um símbolo de força, e passa a ser considerado um poderoso rei, reverenciado e até querido pelos seus súditos. Porque tem o “poder” de vida e morte, anseio maior daqueles, então.
Ubu Rei assassina aqueles que se opõem ao seu regime, “massacra os nobres, os funcionários e, por fim, os camponeses”. Executa seus súditos por mero deleite, como se jogasse xadrez, e usurpa as finanças do reino para seu próprio benefício. Tem ares de menino mimado, perdido, quase ingênuo, mas exibe sua perversidade com sofisticação nas ações governamentais.
É um Pai que “devora” seus filhos-súditos, mas não sem antes seduzi-los com promessas, deixando-os depois à míngua, expostos a privações e muito sofrimentos.
A crítica tem sido muito generosa com essa oportuna montagem, que nos confirma a atualidade do (velho-eterno) tema da maldade humana, da ganância, perversão e desmesura. Um tema tão antigo quanto ainda pouco conhecido, diante da extensão e complexidade que parece ocupar em nosso universo mental.
Nessa, e na nossa história, me pergunto: como e de que estão sendo construídos nossos UBUS na atualidade? Nossas experiências têm mostrado que eles proliferam em larga escala, incontinentes, escoando suas intensidades por onde passam. Em universos os mais variados, e tendo como disfarce muitas vezes uma aura bufa e ingênua, suas atrocidades parecem ganhar força e espaço num vazio, ou num desencontro e desencanto com outras existências. São zumbis devoradores de pessoas e de tudo que houver. Indiscriminadamente. Para esse modo de estar no mundo, não parece existir uma presença do que podemos chamar de outro. Quando governantes, não se empenham por uma coletividade, por um ideal, de fato, mas se orientam por um modo sensorial de estar no mundo, mais primitivo e cruel, que não se refreia até que estejam esgotadas todas as fontes de provimento. São Ubus insaciáveis, aparentemente bufões ou trajados com ares de moralidade convicta.
Em que ponto perdemos o elo com o “humano, demasiado humano”, que nos pouparia da transformação macabra nesse tipo de zumbis?
Vemos que as organizações possíveis entre eles, como chefes ou gerenciadores de um grupo, são aglomerados fundamentalistas, quer como seitas religiosas ou com aparência de agremiação política. Eles parecem criar “apresenciamentos” (porque não há encontro, não há vínculo com pessoas ou ideias), selados e compactados com a goma do valor de qualquer coisa. Esse formato aparenta ser o pacto possível que pode dar uma impressão de “liga”, preenchendo espaços para estabelecer alguma coisa parecida com um compromisso de grupo, com disfarce de ser um bem para o outro, para a coletividade.
Estabelecer esse modo de governar é fazer um uso perverso do outro, “objetalizando” esse outro como depositário e submetido sadicamente a suas perversas necessidades.
Assim como no caso da série House of Cards, podemos apostar que se Jarry, o autor de Ubu Rei, conhecesse nossa história política contemporânea, acreditaria ter escrito tão somente contos ingênuos para crianças. Nossos “paternos” e “paternais” Ubus, governantes que propagandeiam a nobreza de suas intenções – proteção aos desvalidos e minorias – continuam se aproximando como vorazes devoradores e se apropriando até mesmo das mentes de seus governados, como se fossem mesmo os donos-de-quase-tudo.
Segundo Minerbo, a inversão de valores como característica da perversão propõe a transgressão. Diferentemente do funcionamento chamado neurótico, nesse modo corrompido de funcionar não há lei – não há a passagem pelo sofrimento da renúncia ao incesto. A lei pode ser reconhecida como tal, mas o indivíduo ou o grupo não se comprometem com ela. Os atos afrontam a moral pública e a moral privada.
E o que é corrompido, ainda segundo a autora citada, são os sistemas simbólicos envolvidos. Sustentar duas lógicas contraditórias (p. ex.: as funções materna e paterna podem ser corrompidas, invertidas, invadidas, versus essas funções devem ser preservadas) leva a esse desfecho perturbador. A moral dos sistemas é corrompida, instituindo-se a imoralidade. A ruptura e a transformação dos laços simbólicos permitem que a violência circule livremente, em suas formas mais diversas. Até mesmo tornando-se irreconhecíveis demais para serem barradas.
Penso a diferença entre os modos de sofrer atos corruptos e violências como relacionadas à forma como se estabelecem os vínculos primordiais. A fragilidade desses vínculos, tal como temos apreciado em nossas experiências clínicas ou sociais, podem nos remeter também à ideia das políticas na cultura contemporânea como uma espécie de “Mãe Morta” (Green, 1988). Assunto para longas conversas em muitos momentos.
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