Seguindo com nossa série de posts de Dicas Culturais relacionadas com política, trazemos um novo texto que nos apresenta o livro Mal Estar, Sofrimento e Sintoma – Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros, do autor Christian Dunker, e o documentário Três irmãos de sangue, da diretora Angela Patrícia Reiniger.
Que país foi este?
por Josimara Magro Fernandez de Souza, membro efetivo da SBPRP
Enquanto escrevia estas palavras, nosso TSE votava, em sessão da Corte Suprema, a cassação (ou não, como tudo indica) da chapa Dilma/ Temer, vencedora nas urnas das últimas eleições para presidente. A cada dia, são novas denúncias, surpresas e reviravoltas. E, ao mesmo tempo, uma sensação de que fica tudo na mesma. Será?
Tenho a impressão de que foi aberta a Caixa de Pandora das vergonhas nacionais e estamos agora lidando com uma fratura exposta. A grande maioria dos políticos tenta salvar a própria pele, analistas e intelectuais tentam compreender o que se passa, e o sofrido povo brasileiro faz o que sempre fez: luta pela própria sobrevivência. Além da hubris exposta em roubalheiras inimagináveis, outros monstros parecem ter saído da Caixa de Pandora: um deles é o ódio descomunal ao outro.
O ódio à diferença, ao outro “não-eu” parece ter raízes em nossa herança escravocrata e em uma sociedade construída sobre a tradição de favoritismos, privilégios e sobre um abismo descomunal entre as classes sociais e econômicas. É uma falácia afirmar que o problema capital é a corrupção, o problema está nas raízes da formação de nossa sociedade, em que a corrupção está entranhada, como um de seus sintomas.
“É do compromisso mal resolvido entre a família e o estado, entre o público e o privado que se produz colapso crônico de nossos dispositivos liberais de individualização. Esta é a gramática básica da corrupção, não só em nosso país. Esta foi também a retórica explícita nas declarações de voto no momento do afastamento da presidente na Câmara: minha família, minha cidade, meu Deus. Uma origem pura, como a minha, é a única coisa capaz de se opor à corrupção. Ocorre que este é o princípio anti-republicano, que cria a corrupção como forma de vida e prática de governo, baseada na extensão da família e da lógica privada ao universo público e institucional. Não é uma disputa sobre qual é a lei, mas sobre quem manda na lei. O diagnóstico e a mobilização popular em torno da corrupção revela a continuação de uma mesma racionalidade, mas que não é reconhecida como tal em função do hiato, em função de uma espécie de recalque histórico”.
Estas são palavras de Christian Dunker, psicanalista lacaniano e professor titular do IPUSP, um dos principais pensadores da atualidade, capaz de pensar psicanaliticamente questões macroscópicas, coletivas. Em Mal Estar, Sofrimento e Sintoma – Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros, o autor se empenha em compreender o que ele chama de “A lógica dos condomínios”, trazendo original e lúcida reflexão sobre o funcionamento e formação da mentalidade de uma nação.
Este livro e diversos artigos de Dunker merecem nossa atenção. Pensar este momento é um enorme desafio e exige de nós, psicanalistas, sairmos de nossas zonas de conforto, de nossos costumeiros mergulhos no singular de cada situação analítica e nos arriscarmos em articular o individual com a cultura, coisa de que Freud gostava muito e que fazia com maestria.
Para pensar o Brasil, precisamos conhecê-lo e conhecer nossa história. Por isso, recomendo um documentário muito comovente chamado Três irmãos de sangue (de 2006, direção de Angela Patrícia Reiniger), que conta a história de Betinho, Henfil e Chico Mário. São três irmãos, personagens incríveis de nosso passado recente – um sociólogo, um cartunista e um músico, pessoas sensíveis, engajadas nas lutas de seu tempo, que souberam, como poucos, defender a ideia de um Brasil mais justo e menos desigual.
Os três eram hemofílicos, e tristemente morreram infectados pela AIDS. Em um momento em que imperam decisões que priorizam as contas, ajustes fiscais e um tal de “mercado” (onipresente, como uma entidade), conhecer pessoas que lutaram pelos direitos humanos é um alento. Ao final do documentário temos o emocionante depoimento de Afonso Romano de Sant’Anna, quem fala do exemplo dos esquilos, os quais constroem diques que ficarão prontos somente daí a 200 anos. Os esquilos que começam a construção jamais verão os diques prontos, mas deixam o legado para as próximas gerações de esquilos, como os “irmãos de sangue”, que nos deixaram um legado para jamais ser esquecido.
Segundo George Agamben, “Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro”. Conhecer a história de pessoas que não celebravam esse culto ao trabalho, ao dinheiro e ao mercado só pode nos ensinar!
O documentário está disponível no YouTube:
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