Continuamos com a nossa série de posts de Dicas Culturais relacionadas à política. Desta vez, Mauro Campos Baliero vai além e fala sobre outras questões como poder, mentira e, claro, psicanálise.
Sobre o poder, a política, a mentira e a psicanálise
por Mauro Campos Balieiro, membro filiado da SBPRP
Delatores de nomes estranhos estarreceram o país com suas esclarecedoras histórias sobre as relações entre o público e o privado. Fomos, uma vez mais, apresentados aos meandros da corrupção e aos senhores de terno e gravata que conduzem nossa vida pública. Desde as eleições de 2014 nossa sociedade vive uma grande ruptura, o país se dividiu em dois. De um lado os azuis, defensores da ética, da justiça e prometendo devolver o Brasil aos seus melhores dias. Do outro lado os vermelhos, cabisbaixos e envergonhados com tantas denúncias e acusações que mal conseguiam se defender. Além da mídia, o quarto poder, assistimos boas cabeças entrarem nesse jogo dicotômico e empunharem suas bandeiras para lutar por uma causa, que mais parecia uma causa simplista e preconceituosa do que uma verdadeira causa ideológica.
Obviamente não se trata de nada ideológico uma vez que o rumo das coisas atenta a apenas um senhor, qual seja, os interesses econômicos de pequenos grupos que se mantém no poder no Brasil há décadas.
Se observarmos bem, os delatores de nomes estranhos estão prestando um enorme serviço a todos nós. Não pela delação em si, que rendeu a eles próprios um lucro enorme com a compra de dólares na tarde em que a delação foi divulgada (lembremos que a cotação do dólar disparou no dia seguinte à delação). A maior contribuição foi a de abrir a possibilidade de nos retirar de um estado dissociado, no qual acreditava-se em heróis e bandidos. A partir desta delação, toda a classe política, ao menos a classe política dominante, foi exposta em suas práticas ilícitas, seja para manutenção do poder ou para enriquecimento pessoal.
Surgiu então a oportunidade de nos redimirmos e ajustarmos o foco para uma observação mais pertinente.
Nosso problema é outro! Temos raízes culturais que estão baseadas em um modelo cultural compartilhado, no qual se acredita que levar vantagem é algo bom e valorizado. Podemos nomear isto de cinismo cultural. Furar fila, estacionar em locais proibidos ou ter um amigo que deixou seu nome na lista tem valor cultural agregado e dá ao sujeito um certo status que é usado para autopromoção.
A oportunidade que surgiu é a de recolhermos os pedaços que estavam espalhados em ódios e acusações e nos atentarmos para uma nova agenda, uma nova agenda que não aceite mais as práticas corruptas e mentirosas que temos vivido até então.
Toda oportunidade contém riscos, e os riscos que corremos neste momento são importantes e evidentes. Com a falta de bons quadros, como se diz em política, temos que observar as soluções mirabolantes de mentes fascistas, que estão circulando em nossos meios e já contam com o apoio de boa parte de nossa população. Este fenômeno ocorreu nos Estados Unidos e está ocorrendo na Europa. Pode ocorrer aqui também!
Esta forma de pensar pode ser apresentada como redentora ou a única opção para um período de intensa crise de valores. Nestes períodos podem se fortalecer as formas de pensamento que violam direitos humanos e cerceiam a liberdade de expressão.
Mas, o que tudo isto tem a ver com psicanálise? Tem muito a ver, primeiramente porque estamos inseridos nesta cultura e somos de alguma forma mantenedores dela e forjados por ela. Em segundo lugar, mas não menos importante, por sua vocação para se buscar a verdade e no intenso trabalho que se relaciona com o conhecimento que podemos alcançar sobre nós mesmos. E isto não é tarefa fácil!
Nós, seres humanos, somos criaturas frágeis, chegamos ao mundo em tal estado de prematuridade e desamparo que, para sobreviver, necessitamos de um ambiente que garanta o sucesso de nosso desenvolvimento. Apesar da importância deste entorno inicial, a natureza não nos deixou completamente desprovidos de recursos pessoais para enfrentarmos as ameaças à nossa continuidade existencial. Temos como fator fundante de nossa arquitetura psíquica uma capacidade para criarmos um mundo que só existe em um espaço de subjetividade e que é, ao mesmo tempo, fonte da criatividade pessoal e da diversidade humana.
Este mundo inventado pertence a uma etapa de nosso desenvolvimento que pode ser representada na frase de Freud: “sua majestade, o bebê! ”. É nosso alicerce psíquico e recorremos a ele sempre que o contato com a dura realidade se apresenta e nos propõe dificuldades colocando a prova nossa capacidade de tolerância às frustrações. Com nosso desenvolvimento pessoal pode surgir um sujeito mais capacitado para adentrar ao espaço da cultura de forma a compartilhar experiências, e pode ainda surgir um sujeito mais crítico e questionador de falsas evidências. Um sujeito ético!
No entanto, o impacto destas descobertas é penoso e muitas vezes podemos não suportar a dor que nos causa, e desta forma, como uma proteção, mantemo-nos presos às relíquias daquele passado longínquo que ficou impresso em nossas mentes. Este passado funciona como um polo atrativo para as formações de pensamento que se evadem da verdade, construindo verdades próprias (mentiras) ou ainda distorções que só fazem sentido à pessoa que as produz.
Talvez estas conjecturas nos ajudem a compreender porque um importante político citado nas delações venha a público e diga: “Eu estou absolutamente tranquilo!”. É claro que sim, quem está preocupado somos nós. Podemos supor que ele se imagina dentro de um espaço de invisibilidade, no qual todas as suas ações não podem ser questionadas pelo outro, uma vez que seu mundo pode ser pensado como uma extensão de si mesmo, onde seus projetos e suas necessidades existem prioritariamente.
Estas considerações não servem ao propósito de julgamentos morais. Pertencemos todos à mesma família humana e, como tal, estamos passíveis de nos perdermos em nossa experiência de majestade. Hanna Arendt, em sua famosa cobertura do julgamento de Eichmann (tenente-coronel nazista e um dos principais organizadores do Holocausto), conclui que aquele homem não era uma espécie de demônio, mas sim uma pessoa “terrível e horrivelmente normal”. Era uma pessoa que se limitava a cumprir ordens sem discernimento do que estava certo ou errado, do que era bom ou mal.
Trata-se, portanto, de lutarmos para não sermos pessoas terríveis e horrivelmente normais, trata-se de uma luta incessante para nos tornarmos pessoas singulares, com histórias pessoais e originais. Para tanto é necessária alguma forma de renúncia ao nosso bebê majestoso, de forma a inserirmos a alteridade em nossa experiência.
Em seu trabalho, “A violência da mentira”, Suad Haddad de Andrade, citando Bion, nos diz que: “o vínculo entre duas mentes que conduz à destruição de ambas é a mentira”. No mesmo artigo, ela ainda nos diz que: “precisamos da verdade como alimento da mente; a mentira é seu veneno”.
Não há dimensão ética sem alteridade! Não há dimensão ética sem a busca pela verdade! Sem alteridade pode haver normas e regras, e sujeitos terríveis e horrivelmente normais!
A psicanálise tem o potencial de nos ajudar a discriminar um pouco melhor as coisas, de construirmos um contato mais profundo com nós mesmos e de suportarmos mais nossas frustrações. Ajuda-nos a desenvolver a capacidade para pensarmos nossas experiências e suportarmos nossas escolhas e nossas limitações. Mas, nem sempre isto é possível, muitas vezes estamos lidando com fenômenos poderosos e a atração para o império da “sua majestade, o bebê”, pode ser muito forte. No entanto, continuamos confiantes em nosso trabalho cotidiano e seguimos em frente, aprendendo um pouco mais sobre a diversidade humana.
Uma perspectiva um pouco mais poética sobre os riscos do fundamentalismo de qualquer natureza pode ser encontrada em um filme que assisti recentemente. O filme é comovente e divertido, chama-se “Capitão Fantástico”. Vigo Mortensen está excelente no papel principal representando um pai de uma família diferente. O filme retrata a história de um casal e seus seis filhos que resolvem viver uma vida longe dos preceitos da civilização moderna nas florestas do estado de Washington. Tudo parece bem, os valores da sociedade capitalista são questionados e eles acreditam ter construído uma vida perfeita. Mas, como sabemos, não existe uma vida perfeita!
Após uma situação traumática, o pai se vê forçado a rever seus posicionamentos, sendo questionado por seus filhos sobre seus valores e condutas. Este fato dispara uma enorme transformação na vida de todos, a partir da qual todos os modelos anteriores são questionados, permitindo o surgimento de novas possibilidades.
Por fim, somos brindados com uma emocionante versão de “Sweet Child O’ Mine” interpretada pelo personagem de Vigo Mortensen e seus filhos. Vale a pena conferir! Deixo aqui o trailer do filme:
3 de agosto de 2020 at 14:04
Parabéns Mauro!
Excelente comunicação.
Gostaria de continuar recebendo!
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