Quais podem ser as consequências subjetivas do desejo dos pais de se tornarem amigos dos filhos de forma precoce? O que o sucesso recente dos programas de televisão que abordam as dificuldades nas relações entre pais e filhos nos indicam?
Na segunda parte da entrevista, a Dra. Izelinda Garcia de Barros comenta a respeito das dificuldades contemporâneas nas relações familiares e reflete sobre sua formação analítica, a entrada “tardia” de Bion em sua clínica e a relevância de seguirmos valorizando a intimidade em um mundo que, cada vez mais, cultua as aparências e a exterioridade.

Bem-vindos à segunda parte desse prazeroso bate-papo com a Dra. Izelinda.
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LUIZ TOLEDO: A senhora nos contou, em um evento na SBPRP, sobre a dificuldade contemporânea de pais e escolas em estabelecer uma assimetria necessária na relação com as crianças. Isto é, em uma posição delicada, os pais, bem intencionados, tentam dar liberdade e respeitar as decisões das crianças, mas estas podem vivenciar isto como abandono. O que a senhora pode contar sobre sua experiência clínica com essas questões na atualidade?
DRA. IZELINDA GARCIA DE BARROS: Quando comecei a atender, via pais muito rígidos, exigentes, os quais esperavam que os filhos tivessem um bom desempenho acadêmico, excelência nos esportes, isto é, uma expectativa de bom comportamento, sucesso social e boas notas. Eu procurava argumentar que a responsabilidade que todos nós – seres humanos – temos com a nossa vida, de fato, começa na infância. Começamos a aprender, paulatinamente, quais são nossos direitos e deveres na infância, mas, como todo aprendizado, esse caminho deveria ser progressivo e flexível, sem projeções exageradas para o futuro do pequeno.
Se uma criança, por exemplo, atraída pela novidade de uma borracha perfumada do amiguinho, a levava para casa, os pais ficavam preocupadíssimos como se nessa ação se desenhassem indícios de futuros desvios graves de conduta.
O melhor modelo da relação entre pais e filhos é aquele que permite que a dependência total do bebê possa caminhar em direção à autonomia crescente da criança, do adolescente rumo à vida adulta, entendendo autonomia como aquela capacidade de ser responsável pela própria vida, ter capacidade para construir relações afetivas duradouras e contribuir com seu trabalho para o bem estar da sociedade a qual todos pertencemos.
Essa trajetória depende do amparo consistente dos pais que precisam assumir o seu lugar de quem têm maior experiência de vida e, por isso, são capazes de mostrar e ajudar os filhos a incorporar a necessária relação entre direitos e deveres. Que não fiquem tão desejosos de serem amigos dos filhos. Amizade entre pai e filho é uma relação crescente, que ocorre com o tempo. Algo que os filhos adquirem quando se tornam adultos e, quando tudo corre bem, é uma das melhores relações que se pode imaginar.
Nos últimos anos tenho visto pais muito apreensivos e confusos, com dificuldades para modular firmeza e carinho. Assim, tentam proteger os filhos de experiências traumáticas, mas não lhes concedem liberdade de escolha compatível com seu grau de desenvolvimento. Não é tarefa fácil e cometemos muitos erros. Mas também aprendemos, todos – pais e filhos – com nossos acertos e dificuldades, desde que sejamos sinceros e convencidos de que o melhor que se pode oferecer a uma criança é o empenho amoroso dos seus pais.
Também nessa área os psicanalistas têm o que oferecer. O desenvolvimento do “Atendimento Zero a Três”, (isto é, atendimento de pais e bebês e crianças pequenas) que é uma parcela bem nova na psicanálise, tem uma procura grande. Birras, dificuldades de sono, de alimentação, de controle esfincteriano, sintomas de bebês e crianças pequenas que envolvem e desorientam os pais têm sido objeto de trabalho muito proveitoso nesses encontros terapêuticos entre analistas e famílias.
LUIZ: É curioso, tenho impressão de que aquele programa – “Supernanny” – é uma espécie de sintoma dessa situação. Um programa que ganha tamanha repercussão pode ser um indicativo de que muita gente esteja angustiada a respeito das crianças.
DRA. IZELINDA: Eu vi uma ou duas vezes aquele programa. Nas ocasiões em que assisti, ela fazia sugestões sensatas e muito simples, só que com a autoridade de quem sabe que quem está no comando é o adulto. Isso não tem nada a ver com autoritarismo. Autoritarismo é uma coisa, autoridade é outra, autoridade deriva da experiência e do conhecimento da vida.
LUIZ: A senhora comentou que teve uma formação intensa e que a entrada do Bion em seu trabalho clínico se deu tardiamente. Como foi isso?
DRA. IZELINDA: Na década de ’70-80, eu estava muito envolvida com a minha formação e, em particular, em ampliar minhas habilidades no trabalho com crianças, assim não acompanhei o interesse que os trabalhos de Bion despertaram na nossa Sociedade (SBPSP), pois ele não tinha algo que pudesse ser incorporado diretamente ao trabalho com as crianças. Na época, essa valorização quase exclusiva voltada para o pensamento de Bion teve uma repercussão na nossa formação. O próprio estudo de Freud, para não falar em Klein, pareciam menos importantes, propícios, talvez, para chegar ao aprofundamento dos seminários de Bion.
E o próprio curso de formação de Bion foi muito fragmentado, sem uma metodologia. Podia se começar por um artigo que estivesse no livro Transformações, por exemplo, e estudar identificações projetivas como uma forma de transformação, o que de fato são, mas precisávamos antes nos apropriar do conceito de identificação projetiva, um conceito complexo e extremamente útil na compreensão na clínica. Era muito angustiante. Eu acho que hoje em dia não há pensamento em psicanálise que não tenha sido modificado pelas contribuições de Bion e pelos seus leitores.
Eu tenho aprendido bastante com os autores e colegas que trazem Bion para a clínica; hoje ele me ajuda muito, mas um Bion essencialmente clínico. Aprendi muito Bion com Meltzer, com os kleinianos contemporâneos e alguns franceses também.
LUIZ: Eu gostaria de agradecer à senhora pela entrevista e perguntar se gostaria de dizer algo antes de finalizarmos nossa conversa.
DRA. IZELINDA: Essa nossa conversa foi bem interessante, muito útil para pensar, para organizar alguns dados, por exemplo, da minha própria trajetória, enquanto tenho estudado e aprendido Freud com a leitura de sua obra e com meus colegas da Sociedade. A começar pelos distantes seminários da formação no Instituto, meus conhecimentos de Klein, e mais recentemente de Bion, têm sido feitos por um caminho mais diversificado, rastreando o desenvolvimento do pensamento desses autores, sempre em busca da compreensão mais profunda de conceitos fundamentais e sua aplicação clínica e técnica.
E, falando na inserção do nosso trabalho na contemporaneidade, é bastante intrigante a oposição que existe entra uma cultura da superficialidade, por assim dizer, que perpassa em todos os meios de comunicação, da exposição da privacidade nesses canais e o nosso trabalho.
É importante não confundir privacidade com intimidade. As relações primárias, sobre as quais se assentam as bases da subjetividade de cada um de nós são íntimas; também são íntimas as relações que temos com nosso mundo interno e não tem como ser expostas. Seu resultado – nossos pensamentos, nossas ações – podem ser publicadas, compartilhadas, repetidas à exaustão. Ainda assim o núcleo mais íntimo de cada ser humano permanecerá intocado mesmo que o indivíduo não tenha ideia dessa sua riqueza tão original e única quanto suas impressões digitais.
LUIZ: A gente está na contramão de tudo isso.
DRA. IZELINDA: Sim, mas de uma certa maneira a psicanálise sempre andou na contramão… questionando, incomodando, desarranjando certezas estabelecidas como verdades.
E analisar, analisar-se, será sempre uma tarefa exigente.
Se, por um lado, os conteúdos fundamentais do psiquismo são atemporais, acredito que desde que a psicanálise é psicanálise o analista sempre se defrontou com a tarefa dificílima de se distanciar, ter uma visão muito particular daquilo que o paciente conta com seus sintomas, que se expressam dentro da cultura na qual ele mesmo, analista, está imerso. Mas não se pode esquecer que temos a ajuda das partes saudáveis da mente dos nossos pacientes e da nossa própria mente; ela busca a saúde, ela busca a vida.
Acredito que o valor inestimável da vida psíquica de cada ser humano está no cerne da clínica psicanalítica.
Entrevista realizada por Dr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP, e transcrita por Kátia Maria Moreira
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