Espec-atores do Invisível
por Mario Luiz Prudente Correa, membro associado da SBPSP e da SBPRP

Recebo um convite para colaborar com uma competente equipe de psicanalistas encarregados com a alimentação de um recém-nascido Blog da SBPRP. O objetivo do Blog, dizem eles, é apresentar à comunidade uma ideia de como a Psicanálise analisa e interpreta os fatos de nosso cotidiano. Informam que minha colaboração seria a de fazer um comentário sobre os acontecimentos atuais, o descompromisso de nossos políticos com a população. Perguntam qual seria nossa contribuição para o pensar e para a ética dentro desse quadro de uso do poder, da mentira e da incapacidade de pensar no coletivo! Por fim, pedem-me uma dica cultural, seja literatura, teatro, cinema, que aborde o problema.
Em suma, estamos aqui abordando o tema da corrupção, uma forma de sociopatia não é mesmo? Vemo-nos então na curiosa posição de oferecermos uma dica cultural para um problema de incultura.
Atualmente, é comum o termo modus operandi. Mas aqui, vamos tratar de um modus legendi. É um método para ler a cultura a partir dos fenômenos que ela engendra.
Gostaria de oferecer três dicas culturais circunstanciadas e harmônicas com a incultura. O objetivo não é o de ‘elevação’ do espírito, mas lastro e contato com a experiência presente em curso.
Para isso, proporei três exercícios de modus legendi.
Primeira dica
Tente reunir do seu acervo pessoal de memórias, quaisquer formas de Arte Burlesca que conheça. Não importa a disciplina. Teatro, Pantomima, Balé, Arte Circense, etc. Use a sua imaginação. Abra espaço em você para que elementos de burla, logro e embuste, tomem o palco de sua mente. Se conveniente, feche os olhos e imagine os acenos do farsesco. As representações teatrais exageradas, os personagens extravagantes, as figuras bufonas de risadas performáticas.
Ainda nesse estado de espírito, traga ao palco novos elementos. Agora das artes fílmicas. Pornochanchada é uma boa pedida. Repare nos engraçadíssimos títulos com duplo sentido. A figura do sujeito malandro. As produções baratas com sucesso de bilheteria. A exaustão temática. O erotismo ingênuo.
Em seguida, convide para o seu anfiteatro alguns outros gêneros para o mesmo exercício de imaginação. O Trash, o Cinema Catástrofe, a Ficção Científica, o filme Policial, o de Guerra.
Acolha esses novos pensamentos que chegam e se acumulam em você e reflita sobre seus mais evidentes e típicos elementos. Não importa a aglomeração. Detenha-se num Faroeste! Observe os fatores de sua equação… A solidão heróica do cowboy. O acanhamento embaraçado do xerife. As caravanas nas ermas e perigosas planícies. Os vindiços, aventureiros e garimpeiros do ouro. As ricas criações de gado. Os duelos. O clima dos saloons com seus largos balcões de madeira… O aconchego interessado das prostitutas. Os gamblers à mesa. A vadiagem. E, lá fora, a Guerra Civil. A tocaia dos pistoleiros organizados para o assalto à locomotiva da civilização.
Pois bem! Ao d-espertar dessa experiência emocional como se fora um sonho, como você o interpretaria? Uma possível interpretação seria que todos esses gêneros cinematográficos e artísticos componham algo similar ao conteúdo manifesto de um sonho. Enquanto o pensamento onírico latente, reprimido ou não revelado, seja a própria cena política atual.
Nesse caso, e em sentido inverso, se fôssemos descrever esse mesmo cenário político por meio de um longa-metragem, precisaríamos de todos esses gêneros cinematográficos e artísticos, para compor nosso filme político!

Segunda dica
Vale lembrar que o objetivo do Blog é apresentar à comunidade uma ideia de como a Psicanálise interpreta os fatos de nosso cotidiano, bem como contribuir para a ética, dentro desse quadro de uso do poder, da mentira e da incapacidade de pensar no coletivo. Por fim, há o pedido de uma dica cultural que aborde o problema.
Então, em nosso segundo estímulo para um modus legendi, devemos nos voltar para fatos do cotidiano mais imediato. Os recentes eventos em altas Cortes do Judiciário brasileiro. Como você bem pode reparar, estamos regulando nosso foco em círculos cada vez menores. Então, que fenômenos o emprego do nosso modus legendi pode captar nesse círculo de eventos?
Para responder a isso, valho-me do genial Teatro Invisível. Uma ideia concebida por Augusto Boal, no contexto da Ditadura Militar e Censura ao pensamento contraditório.
O Teatro Invisível consistia em ‘armar’ uma cena com forte apelo emocional e encená-la em pleno espaço público e com livre acesso a todos. Pontos de ônibus, esquinas movimentadas, praças, avenidas, etc. O essencial era que os atores não revelassem que eram atores, de maneira que ninguém soubesse da encenação. Assim, o ‘palco’ permanecia invisível, fusionado com o espaço público cotidiano. Favorecendo mobilização e manipulação de percepções e sentimentos. Sem poderem ‘enxergar’ o palco e nem a cena pré-ensaiada, os ‘espectadores’ aderiam com envolvimento quase hipnótico à encenação interagindo e participando da cena! Eram assim transformados em espec-atores involuntários de um teatro invisível.
Lá no tempo de Boal, esse modo de trabalho performático, uma espécie de ‘pegadinha’, visava transformação social em benefício de direitos humanos, sem mobilizar tantas suspeitas e censuras da ditadura.
Mas aqui… Bem, sugiro um exercício para os nervos ópticos:
Podemos enxergar o Teatro Invisível no espaço e no tempo onde ele estiver ocorrendo, enquanto ele ocorre?
Observe a Toga do magistrado.
Uma peça de vestuário carregada de solenidade e apelo estético quase hipnóticos.
Penetrando a camada de hipnose, continue observando.
Note a transubstanciação ético-estética. O momento em que a Toga do magistrado se converte no Manto do Mago prestidigitador.
Toga → Manto
Observe agora como nas sombras desse Manto desaparecem a verdade e o senso-comum.
Terceira dica
O Blog solicita uma dica cultural para o problema do descompromisso do político com a população.
A terceira dica está circunscrita em um círculo ainda menor:
Pressionado pela Cultura e pela Observação, o círculo incultural da corrupção implodiu em Ab-reação.
O espaço geométrico está agora restrito a um ponto. A ponto de ser uma:
Ab-dica!
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