A civilização do espetáculo
por Nilton Bianchi, membro associado da SBPRP
Em 2012, Mario Vargas Llosa lançou o inquietante e corajoso ensaio “A civilização do espetáculo” (A Civilização do Espetáculo – uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, Ed. Objetiva) no qual aborda um fenômeno que ele resume da seguinte maneira: “Em nossos dias a cultura já não é o mesmo que era há alguns anos atrás, porque o conceito de cultura foi tão estendido que passou, de certa forma, a abranger tudo. E se a cultura é tudo, também, de alguma forma, já não é mais nada”. A partir daí, afirma que a cultura, que é sempre produzida por uma certa elite, é responsável por “enriquecer nossa sensibilidade, enriquecer nossa imaginação, enriquecer todas as manifestações da vida que há em nós, desde nossa conduta política até nossa condição íntima, nossos prazeres mais privados”.

Sigo com as palavras do autor: “Mas talvez, o aspecto onde a cultura tenha deixado uma marca mais profunda e no qual realizou as maiores transformações na história, foi desenvolver em nós o espírito crítico. O espírito crítico é absolutamente fundamental se nós não quisermos nos petrificar. (…) nada mantêm tanto o dinamismo vital, as ilusões que fazem com que desejemos coisas diferentes daquelas que temos, como a cultura. Porque a cultura nos confronta com um mundo mais rico que o nosso. O que nós criamos através da cultura é algo que falta à vida real, que falta no mundo em que vivemos, em nossa existência, para completar-nos.”
O autor pondera que a alta cultura nunca foi fácil, que ela sempre exigiu um certo grau de adestramento e de disciplina e que, por este motivo, nunca esteve acessível ao interesse de todos. Ainda assim, afirma que apesar de que não serão todas as pessoas que serão capazes de gozar, por exemplo, com a leitura de Joyce ou com uma sinfonia de Mahler, as grandes obras, ainda quando tenham sido rechaçadas e/ou atacadas em seu tempo, sempre acabaram por trazer um aprimoramento ao ser humano e à sociedade como um todo.
Em paralelo a esta afirmação, coloca que nos dias atuais a cultura foi convertida em pura e simples diversão, coisa que resultaria num distanciamento dos valores mais intrínsecos da cultura tradicional (que é o de questionar e de criticar a realidade e a condição humana), com isto ficando dissociada de sua condição formadora e revolucionária. A este respeito diz que “A revolução audiovisual criou formas de entretenimento – que alguns chamam culturais, criativas – que vão tomar o lugar da grande cultura”. Disto resultaria que as pessoas passaram, por exemplo, a ir à galeria de arte como quem vai à Disney, em busca de artistas que, em suas palavras, “são mais palhaços que artistas”. Em outros termos, assinala que as pessoas passaram a buscar por diversão e não por Luzes, de modo que a arte teria se transformado num circo e que a ideia de êxito, no lugar da de crítica e de criação, tornou-se universal – pela primeira vez na história – tanto no meio cultural quanto no não-cultural.
Nesta linha, Llosa afirma corajosa e decididamente que atualmente nas artes o espírito “novidadeiro” da pós-modernidade – com sua proposta de ruptura permanente com a tradição e através da desconstrução da noção de belo ao fazê-lo submergir e coincidir, em plano indistinto, à noção de feio (ou seja, já não se consegue diferenciar o belo do feio) –, fez com que a cultura fosse reduzida ao entretenimento e que, mais ainda, passasse a competir com outras formas de entretenimento banal. Isto faria com que o embusteiro, o esperto, o pícaro, o oportunista, ao final, prevaleça sobre o autêntico, sobre aquele que realmente faz um trabalho novo e criativo. Então, já não haveria maneira de se estabelecer uma fronteira entre os dois na medida em que os cânones tradicionais teriam sido destroçados. Disto resultaria a impossibilidade atual de se diferenciar aquilo que é genuíno daquilo que é postiço, daquilo que é simples diversão. Com efeito, a função da Crítica foi substituída pela publicidade, que trabalha a serviço dos objetivos do mercado: segundo o autor, tal fato tem como resultado uma muito dramática confusão no plano das artes.
Então, a cultura passou a ser tudo: uma diversão, um mero jogo prazeroso que de algum modo nos compensa de forma fácil pelas agruras da vida. Ora, se, segundo o autor, será exatamente a função crítica da arte aquilo que produzirá o aprimoramento e a humanização das pessoas e da sociedade em seu conjunto, a desconstrução desta função junto com a banalização da arte, fará surgir um mundo de autômatos (de indivíduos altamente técnicos e especializados, sem nenhuma universalidade nem crítica), manipulados pelo poder. Nada, afirma Llosa, nos defende mais contra esta automatização – sonho de todas as grandes construções totalitárias – como a cultura, razão pela qual ela sempre foi censurada por todas as ditaduras.
Que a cultura esteja se convertendo em diversão ligeira, “leve” e passageira (um objeto de consumo dentro de uma lógica de mercado que precisa do novidadeiro para vender sempre mais), poderia resultar numa tremenda regressão da humanidade como um todo no que tange a todos os aspectos da vida, desde os morais, passando pelos criativos, afetivos e até mesmo pelos sexuais. Llosa produz, então, a grave afirmação de que esta tendência poderia fazer o homem regredir, apesar da sua tecnologia sempre mais desenvolvida, aos tempos das cavernas. Em suma, o que forjou a civilização, na visão do autor, foi a cultura. E sua espetacularização poderia, no limite, levar a civilização ocidental à sua derrocada. O que poderia surgir daí é uma completa incógnita.
Ao lermos a obra de Freud constatamos que sua produção está toda ela (toda!) ancorada na alta cultura em seus pressupostos teóricos mais fundamentais. Ou seja, a psicanálise não existiria sem a grande cultura, fato que a torna uma visão de homem e uma concepção de mundo, muito mais além de uma simples técnica. A psicanálise não é mera tecnologia (como são e se pretendem ser muitas outras “psicologias” em suas teorizações e práticas), e nisto radica, muito para lá daquilo que Freud nominou como resistências à psicanálise, uma fonte importantíssima do rechaço atual por ela sofrido nos meios científico e cultural. Nestes termos, precisaríamos assimilar a crise de aceitação da psicanálise (sim, crise de aceitação, e não crise DA psicanálise!) à crise da alta cultura…
A pós-moderna civilização do espetáculo, do divertimento e do prazer fácil, barato, banal, fútil e descartável, ao destronar a cultura, incrementa, via o incentivo de uma empobrecedora proposta tecnicizante do homem (segundo Llosa, nossa sociedade tornou-se pródiga em produzir Especialistas, indivíduos que conhecem muito de uma única coisa e que são incapazes de reconhecer o todo) por um lado, e consumista, por outro, o recrudescimento da incontinência (imediatismo) e do individualismo egoísta e competitivo. Esta civilização, ao impor insistentemente a necessidade de sucesso como modelo de satisfação e de felicidade e ao propor a experiência da aparência em lugar da de essência como antídoto mágico às angústias, aos conflitos instintuais internos e aos infortúnios da vida, acaba por promover a condição narcisista e impulsiva nos indivíduos. Por consequência, gera uma sociedade não somente regredida, como também apática, egocêntrica (portanto, aonde impera a solidão) e violenta.
Não é incabível conjecturar que dificilmente a psicanálise poderia nascer em tempos como os atuais. Como se sabe, sua concepção se deu num meio e numa época em que vicejava a grande cultura em sua mais alta fertilidade, o que confere à psicanálise a honrosa condição, antes que de “ciência”, de bem cultural por excelência. Nesta medida, possivelmente nos caiba, como psicanalistas, o imperativo de lutarmos não somente pela preservação de nosso ofício como corpo de conhecimento e como prática que é, mas também pela proteção e promoção da alta cultura. Neste caso, o exemplo de conduta que o próprio Freud nos deixou por meio de sua vida e obra poderia nos servir de incentivo.
“A Civilização do Espetáculo” de Mario Vargas Llosa é leitura imprescindível!
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