“Os legisladores não reconhecidos do mundo”

por Luciano Bonfante, membro filiado da SBPRP

 

ÁLIBI

se os poetas não cantassem

o  que teriam os filósofos a explicar?

– José Paulo Paes

 

Ah, como os filósofos haveriam de aprender se consentissem em ler os poetas!

– Gaston Bachelard

 

Ao ser convidado a colaborar com a sessão Dicas do blog da SBPRP, tive uma curiosidade inicial: Qual a etimologia da palavra “dica”? Pois bem, a origem etimológica de “dica” é indo-europeia. Vem de deik, e significa “indicar”. Igualmente do latim digitus, “dedo”, e do grego deiknynai , “provar”. Como “informar” também está entre os significados. Ou seja, é indicar alguma coisa a alguém, meter o dedo onde foi chamado (ou não!) geralmente de algo que se tenha provado.

Para chegar à dica, farei algumas breves observações. A relação estreita entre arte e psicanálise nos enseja perguntar outra vez: psicanálise é uma ciência ou uma arte? Precisamos pensar sobre isso de forma excludente? Nossa responsabilidade é inerente à ética do cientista na função de psicanalista, mas esta se compõe e se alimenta de vários mananciais criativos humanos.

A história da psicanálise está intimamente imbricada com a arte, como hoje a arte e a cultura estão impregnadas pela psicanálise. Um de seus paradigmas fundantes, a teoria do Complexo de Édipo, foi oferecido pelo teatro grego antigo, na obra Édipo Rei, de Sófocles. O criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), a despeito do neurologista, era um leitor contumaz. É conhecida sua relação com a arte e os escritores. Artigos como “Uma Recordação de infância de Leonardo da Vinci” (1910) ou “Doistoievski e o parricídio” (1928 [1927]) evidenciam esse interesse. E, ele mesmo, Freud, era excelente escritor, lembrando que seu único prêmio importante em vida, o Prêmio Goethe de Literatura, era honraria concedida aos escritores. Como também é conhecida certa afirmação sua de que quando ele chegava a algum lugar pela teoria, um poeta havia chegado antes. Dados assim são suficientes para concedermos atenção e deferência aos escritores e poetas.

A quem se dispuser conhecer mais dessa relação de Freud com a arte e cultura, poderá encontrar nos livros “A formação cultural de Freud, Freud com os escritores ou em “Os dez amigos de Freud volumes 1 e 2, para citar apenas alguns exemplos, bem como em suas várias biografias; ou em sua obra, evidentemente.

Dos primórdios da psicanálise, com Freud, à linha evolutiva do pensamento psicanalítico é importante citar o psicanalista britânico Wilfred R. Bion (1897-1979), cuja obra contém referências de poetas como T. S. Eliot, Milton, Keats, William Blake e outros, emprestando versos que chegam a se confundir com o pensamento original do próprio Bion. Uma citação comum é “a resposta é a ruína da pergunta”, de autoria do escritor francês Maurice Blanchot, ou, o conceito de “capacidade negativa”, referência à capacidade de tolerância do desconhecido, de suportar dúvidas e incertezas, aproveitado por Bion da poesia de Keats. Nos versos de T. S. Eiliot, possivelmente temos a referência mais conhecida, quando sabemos da inspiração de Bion na poesia para propor seu pensamento teórico-clínico de “sem memória, sem desejo e sem teoria/compreensão” no contato com o analisando.

Com essas ideias em mente, minha dica ao leitor do blog é a leitura do livro “Uma Defesa da Poesia e Outros Ensaios do poeta do romantismo inglês, Percy Bysshe Shelley (1792-1822). A edição é de 2008, Editora Landmark, com tradução de Fábio Cyrino e Marcella Furtado. Edição bilíngue, uma vantagem aos estudiosos da língua inglesa, proporcionando a leitura no idioma original ou o acompanhamento da tradução. Mas não esperem uma edição caprichada, complementada por críticas ou outros textos extras. Os editores poderiam, pelo menos, oferecer um prefácio à edição. O livro sequer enumera as páginas no sumário! Mas, claro, o interesse maior está lá.

Imagem: reprodução

Em “Uma Defesa da Poesia e Outros Ensaios, Shelley não só tece uma defesa apaixonada e convincente da poesia, como é perceptível o pensamento filosófico conduzindo sua defesa. Há sentenças marcantes que produzem efeito como excertos do texto integral, e se prestam ao pensamento funcionando como aforismos. Como, por exemplo, “A poesia, em seu sentido comum, pode ser definida como ‘a expressão da imaginação’: e a poesia é inata à origem do homem”. Outra: “… ser um poeta é apreender o real e o belo, em uma palavra, o bem que existe na relação, subsistindo, primeiro entre a existência e a percepção, e, em segundo lugar, entre a percepção e a expressão”. Ou afirmações ainda mais poéticas como “Um poema é a própria imagem da vida, expressa em sua verdade eterna” e “a poesia é um espelho que torna belo o que é distorcido”. Como pensamento e reflexão: “No começo do mundo, nem os próprios poetas, nem seus ouvintes, eram totalmente cientes da excelência da poesia: pois esta age de maneira divina e misteriosa, além e acima da consciência; e está reservada às futuras gerações para contemplar e avaliar a poderosa causa e efeito em toda a força e esplendor de sua união”. Uma última citação bastante enaltecedora da poesia: “A poesia é, com efeito, algo divino. É, de uma só vez, o centro e a circunferência do conhecimento; é aquela que compreende toda ciência, e àquela que toda ciência deve se referir. É, ao mesmo tempo, a raiz e a flor de todos os outros sistemas de pensamento; é dela que tudo nasce  e a que adorna a tudo; e aquela que, se enferrujada, nega o fruto e a semente, e retém, do mundo estéril, o alimento  e a sucessão de mudas da árvore da vida. É a perfeita e consumada superfície e florescência de todas as coisas; é como o odor e a cor da rosa para a textura dos elementos que a compõem, como a forma e o esplendor da beleza inalterada para os segredos da anatomia e corrupção”.

A defesa de Shelley abrange o período desde Platão e Aristóteles, quando a poesia e processo criativo não mereciam estudo porque, na compreensão daquele período, o homem pensava segundo as leis da lógica e da matemática. Posteriormente a poesia ganha condição de processo criativo, sistema de pensamento e linguagem, depois passa a prevalecer nos poemas épicos.

O psicanalista norte-americano Donald Meltzer (1922-2004) remete a esse mesmo ensaio de Shelley logo na introdução de sua obra “A Apreensão do Belo, ao assinalar a importância da criatividade na psicanálise, referindo-se a esta como “um método que capacita duas pessoas a ter a conversa mais interessante do mundo”, pela qual se pode ter experiências emocionais em que a mente, ao operar sobre essas experiências, fornece representação pela formação simbólica, tornando possível pensar sobre elas, processo nomeado por Meltzer de “beleza do método”. Nesse momento, esse autor atenta para a relevância dos artistas e sua criatividade que,  junto aos poetas, “são os legisladores não reconhecidos do mundo”, como escreve Shelley em seu ensaio. Afirmação que dialoga com o nosso Mário Quintana, em uma poesia do Caderno H, onde faz uma atribuição aos poetas como sendo os continuadores da criação após Deus ter concluído o sétimo dia.

O conteúdo do livro de Shelley ainda traz os ensaios Sobre o Amor, Sobre a Vida, Sobre Uma Existência Futura, Sobre as especulações da Punição da Morte, Sobre as especulações metafísicas, Sobre a Moral, Sobre a Literatura as Artes e os Hábitos dos Atenienses, Sobre o Simpósio, ou Prefácio ao Banquete de Platão e A Necessidade do Ateísmo, este último rendeu-lhe a expulsão de Oxford.

No ensaio do título, a quantidade de referências aos poetas épicos como Homero, Dante, Virgílio, Milton, Petrarca, ocasiona certa dificuldade de completa assimilação quando não se tem familiaridade com as obras mencionadas, mas não compromete a leitura. Presumo que para um texto escrito no início do século XIX, era comum no meio literário a intimidade com essas obras, qualificadas por Shelley de eternas. É razoável deduzir como deveria mesmo ser natural o estudo aprofundado dos grandes épicos, sendo próprio da formação cultural dos intelectuais de então.

Percy Shelly, que foi casado com a escritora Mary Shelley – conhecida mundialmente pelo seu clássico livro de terror gótico, “Frankenstein –, teve um fim trágico: Ele morreu afogado em um naufrágio de uma pequena embarcação de sua propriedade, a menos de um mês de completar trinta anos apenas.

Encerro com o pensamento do escritor e filósofo Emerson, “As palavras são os órgãos finitos de uma mente infinita”, que não só traz a concepção psicanalítica da qualidade infinita da mente, como faz alusão à consciência da limitação da expressão pelas palavras na comunicação da dupla analítica, e de circunstâncias de sua insuficiência e imprecisão. Inclusive porque, muitas vezes, lidar com o mundo interno é lidar com o inefável. No entanto, a palavra é a linguagem disponível para se ter “a conversa mais interessante do mundo” e fazer a comunicação consciente da relação. E para enriquecer tão singular experiência e fomentar “a beleza do método” podemos recorrer à poesia, como nos indica Shelley.