Há três anos, o Setembro Amarelo, uma grande campanha iniciada pelo CVV (Centro de Valorização da Vida), pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) e pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), divulga e estimula o debate em torno de um tema que tem se tornado mais frequente e preocupante no país: o suicídio.
Atualmente, os casos de mortes por suicídio no Brasil superam o número de mortes por AIDS ou por certos tipos de câncer. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), nove em cada dez casos poderiam ser evitados.
Conversei recentemente com a Dra. Cybelli Morello Labate, membro filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). Na entrevista abaixo, Cybelli aborda o tema sob vários aspectos, desde os tempos de sua formação universitária até os dias atuais, dos suicídios aos micro-suicídios.
Bem-vindo(a) e boa leitura!
LUIZ TOLEDO: O que você pode nos contar sobre a sua formação e o surgimento do seu interesse pela Psicanálise?
DRA. CYBELLI LABATE: Sou médica, formada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP) e psiquiatra, tendo feito residência médica no Hospital das Clínicas da FMRP. Atualmente, sou membro filiado do Instituto de Psicanálise da SBPRP.
Não sei dizer exatamente quando surgiu meu interesse pela Psicanálise. Tenho a impressão que, antes mesmo de saber o que era Psicanálise, já havia algo em mim que me levava para esse campo. Mas quando entrei na faculdade de medicina, nada disso era muito claro. Hoje consigo perceber que já naquela época havia uma curiosidade, uma atração, um interesse pelas coisas da mente, mas que era muito mais um sentimento do que algo objetivo, pensado.
Ao longo do curso, o contato com professores (principalmente com o Prof. Claudio Rodrigues, que era docente do Departamento de Psiquiatria, uma pessoa que marcou minha formação) e com colegas mais velhos, que foram me apresentando a Psiquiatria e a Psicologia, foi definindo melhor essa área de interesse. Na minha visão, desde o início, a psiquiatria e a psicanálise estavam intimamente ligadas. Tive a sorte de que naquela época, início da década de 90, quando terminava a graduação, iniciando a residência médica, o Departamento de Psiquiatria tinha forte influência da psicanálise, ao contrário do que passou a ocorrer a partir da década seguinte.
Além disso, penso que esse “sentimento” de que as coisas da mente podiam “fazer sentido” me levaram a procurar psicoterapia de orientação psicanalítica quando estava ainda no quarto ano da faculdade. E, certamente, essa minha experiência pessoal levou-me a aprofundar meu interesse nessa área.
LUIZ TOLEDO: Quando estava pensando sobre as questões dessa nossa conversa me lembrei de quando trabalhava na Santa Casa em São Paulo e um paciente que se tratava na instituição cometeu suicídio. Aquele foi um momento difícil para todos os que trabalhavam no hospital, mesmo para aqueles que não atendiam diretamente àquela pessoa. Você se lembra de qual foi a primeira ocasião em que teve contato com casos de suicídio em sua vida profissional? Como foi?
CYBELLI: Meu primeiro contato com casos de suicídio foi ainda durante a graduação, nos últimos anos, quando houve dois casos de suicídio de duas médicas residentes de especialidades distintas, num período de tempo relativamente curto. Embora eu ainda não fosse uma profissional naquela época, eram pessoas com as quais tinha contato no ambiente de trabalho. Toda a equipe ficou muito mobilizada e nós, alunos, muito assustados.
Mais tarde, trabalhando como psiquiatra em um serviço de atendimento psicológico a estudantes da FMRP, tivemos um caso de suicídio de um aluno da faculdade, que foi uma das situações mais marcantes que vivi. Foi uma situação violenta e dramática, muito difícil de lidar, pelas próprias características do caso e pela repercussão que teve em toda a comunidade universitária. Geralmente essas situações geram sentimentos catastróficos de culpa, raiva, impotência e fracasso nas pessoas mais próximas ou envolvidas no atendimento, muitas vezes provocando uma busca por “responsáveis” e dificultando a reflexão no sentido de elaboração e de se compreender mais profundamente a complexidade da situação.
LUIZ TOLEDO: As entidades que divulgam o Setembro Amarelo (campanha de informação sobre prevenção de suicídios) sustentam que, atualmente, as mortes por suicídio são mais frequentes do que as ocasionadas pela AIDS ou por vários tipos de câncer (cerca de 32 pessoas por dia). Você percebe um aumento do número de casos nos últimos anos?
CYBELLI: É realmente dramático pensarmos nessas estatísticas. O número de mortes por suicídio, uma morte na maioria das vezes “evitável”, ser maior do que o número de mortes por doenças como AIDS e câncer nos dá a dimensão de que estamos diante de um problema de saúde pública. Há muito o que se pensar nesse sentido. Em que tipo de sociedade vivemos ou que tipo de sociedade estamos criando? Será que vivemos um tempo em que a solidão e o individualismo predominam sobre o compartilhar das experiências, principalmente das experiências de sofrimento? Conseguimos desenvolver tecnologias para tratar doenças potencialmente mortais, mas estamos dando a mesma atenção para lidar com angústias potencialmente mortais? Será que a importância que damos ao corpo é a mesma que damos às questões da mente e o investimento que fazemos em saúde mental é proporcional ao que se investe na saúde física?
Eu não tenho tido casos recentes de pacientes que tentaram suicídio, mas observando as notícias que me chegam, parece haver, sim, um aumento, principalmente dentro de alguns grupos sociais.
LUIZ TOLEDO: Como você vê o trabalho analítico com pacientes potencialmente suicidas?
CYBELLI: Eu iria dizer que o trabalho analítico com pacientes suicidas é um trabalho difícil, mas na verdade, não existe trabalho analítico fácil! O atendimento de um paciente potencialmente suicida implica em entrar em contato com o desespero profundo do paciente, que vai mobilizar, invariavelmente, muitas angústias no analista. Frequentemente é necessário que o atendimento seja feito em conjunto com o psiquiatra, pois em muitos casos há necessidade do uso concomitante de medicação, e uma boa parceria entre o psicanalista e o psiquiatra pode ajudar muito a manejar várias demandas, inclusive com relação à orientação da família.
Mas, na minha opinião, o trabalho analítico vai ter um papel fundamental para esses pacientes. O desespero e as angústias suicidas são dimensões da mente do paciente. Para ele, insuportáveis. Para tomar contato e transitar nessas dimensões da própria mente, é necessário que se encontre uma outra mente, capaz de abrigar o sofrimento, proporcionando um continente e gerando condições para que as angústias possam ser, na medida do possível, vividas, elaboradas e transformadas.
LUIZ TOLEDO: Como entende que os analistas possam contribuir com seus pacientes a esse respeito?
CYBELLI: Como disse anteriormente, penso que os analistas podem oferecer esse “continente”, um espaço no qual esses pacientes possam ser acolhidos e ouvidos. Onde se possa estar presente da maneira que for possível. Onde as angústias possam ser expressas e a escuta seja destituída de “pré-julgados” ou “pré-conceitos”. Muitos suicídios podem ser evitados se a pessoa encontra esse espaço. Chega-se aí ao início de uma nova etapa de um longo trabalho.
O problema é que o risco iminente de suicídio pode ser muito mobilizador e levar o analista a se assustar e a querer tomar providências, “fazer coisas”, ao invés de se aproximar e acolher o sofrimento. Esta pode ser uma grande dificuldade do atendimento e vai depender do quanto cada um de nós pode desenvolver a condição de manter a capacidade analítica nessas situações extremas. Mas não quero dizer, com isso, que não cabe ao analista tomar medidas protetoras quando julgar necessário.
LUIZ TOLEDO: Séries como a 13 reasons why colaboram com o debate? De que forma?
CYBELLI: Eu não assisti a 13 reasons why, mas acompanhei a polêmica. Li opiniões considerando que a série poderia estimular pessoas fragilizadas a cometer suicídio. Essas críticas consideram que a série ignora muitas recomendações da OMS sobre as maneiras de se abordar o suicídio em obras de ficção e criticam principalmente a violência e o realismo da cena no qual o ato é consumado. Por outro lado, obras que expõem o problema do suicídio são bem-vindas porque abrem espaço para que a sociedade converse sobre este tema tabu, e podem contribuir para que pais, professores e amigos estejam mais disponíveis para detectar sinais de risco, para acolher e dar voz à angústia dessas pessoas. De qualquer forma, é um assunto muito delicado e deve ser tratado com todo cuidado, levando em consideração os estudos existentes sobre essa questão.
LUIZ TOLEDO: Pensar em suicídios me faz pensar em micro-suicídios: ocasiões nas quais matamos oportunidades de experiências, relações, potenciais ou a própria análise. Não sei como você vê o tema, me parece que o foco das campanhas são sempre amplos e literais. Não te parece que a psicanálise também pode ser útil para trabalhar os nossos micro-suicídios cotidianos?
CYBELLI: É um outro vértice, uma outra maneira de se olhar para a questão do suicídio: um “suicídio microscópico”. Não tenho dúvidas de que a psicanálise pode ser um instrumento precioso para lidarmos com esse funcionamento que, por ser “micro”, pode passar despercebido no nosso dia-a-dia, mas nos empobrece progressivamente. A cada vez que nos calamos, que deixamos de levar adiante uma ideia por nos sentirmos incapazes, cada vez que nos desvalorizamos por não atingirmos um ideal, podemos estar matando possibilidades nascentes. A psicanálise pode nos ajudar a conhecer e tolerar nossas precariedades e assim, a partir da realidade e não de idealizações, desenvolver os recursos para investirmos em novas possibilidades.
Entrevista realizada por Dr. Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP.
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