Por Sônia Maria de Godoy, Membro Associado da SBPRP

“A vida, é claro, jamais captura toda a atenção de alguém. A morte é sempre interessante e nos atrai. Assim como o sono é necessário à nossa fisiologia, a depressão parece ser necessária à nossa economia psíquica. De alguma forma secreta, Tânatos, além de se opor a Eros, também o nutre. (…) embora Eros predomine na maioria de nós, em ninguém Tânatos está totalmente subjugado”. – Janet Malcolm

O convite para escrever sobre Suicídio, proposta de nossa Sociedade para juntarmo-nos à campanha da Organização Mundial de Saúde de Prevenção ao Suicídio, o “Setembro Amarelo”, levou-me a refletir sobre este tortuoso caminho para sair da vida, e a diversidade de motivos para chegar à esta desistência de viver. Penso que cada história carrega com ela particularidades próprias da pessoa. Minha atenção é levada, a princípio, para o lado oposto, para exemplos de pessoas que apresentam uma força e vontade de viver muito intensas apesar de inúmeras derrotas físicas, familiares, profissionais e em relacionamentos. A luta e o esforço para vencer Tânatos emociona, enquanto observo nestas pessoas trajetórias de vida tão ligadas a Eros, apesar das dificuldades.

René Magritte (1926) – La traversée difficile  https://en.wikipedia.org/wiki/The_Difficult_Crossing

Imagens do filme Sylvia: paixão além das palavras, sobre parte da vida da poetisa e escritora de contos americana Sylvia Plath, trazem a fragilidade flagrante dela, assim como descrito no livro A mulher calada, de Janet Malcolm, uma das várias biografias sobre a relação de Sylvia e Ted Hughes, seu marido, também escritor.

Sylvia, nascida em 1932, perdeu o pai aos nove anos e já tinha tentado suicidar-se por duas vezes, quando conseguiu morrer aos 31 anos. No poema Daddy diz: “Eu tinha dez anos quando enterraram você/ Aos vinte tentei morrer/ E voltar, voltar, voltar para você” . E ainda: “/Aos vinte tentei morrer/ E voltar, voltar, voltar para você/ Até os ossos já me bastam, pensei.”

Em 1963, aos 31 anos, numa Londres que passava por um inverno rigoroso, abandonada pelo marido com seus dois filhos, ela se suicida, preservando a vida das crianças com cuidados práticos (leite e pão na cabeceira da cama para quando acordassem, portas dos quartos vedadas para que o gás não chegasse até eles), porém é encontrada com um bilhete inconcluso onde pedia que telefonassem para seu psiquiatra. Teria se arrependido? Esta dúvida permanece em nós em qualquer notícia de morte nestas circunstâncias. Desejava tanto, mas será que? Não haveria meios de evitar? Como evitar e insuflar vontade de viver em quem está com esta determinação?

Por outro lado, o filme Amor nos mostra outro tipo de suicídio, e nos faz pensar na eutanásia. O mesmo acontece no livro Carta a D. história de um amor, de André Gorz.

Cena do filme Amor [Imagem: reprodução]

A.Alvares, escritor, crítico literário educado em Oxford, em O Deus Selvagem, adentra vários caminhos sobre o suicídio e assim nos oferece um amplo, denso e complexo estudo sobre o suicídio. Tendo se aproximado de Sylvia Plath em seus últimos tempos de vida, nos oferece no Prólogo sua amizade e seus últimos dias com ela, onde diz: “Eu costumava considerar sua alegria uma fachada, como se ela fosse capaz, de maneira um tanto esquizoide, de virar as costas para seu sofrimento a bem das aparências e fingir que ele não existia. Mas talvez, também, conseguisse manter sua infelicidade sob controle porque podia escrever sobre ela, porque sabia que estava salvaguardando de todos aqueles terrores algo maravilhoso. O fim veio quando ela sentiu que não mais podia suportar o tema. Tinha esgotado o assunto, e estava pronta para algo novo”.

Mesmo tentando compreender, ele diz que até hoje acha difícil acreditar. Talvez porque ele a tenha visto tão depressiva, antes do Natal, com cabelos “exalando cheiro forte como de um animal”, mas tenha se deixado seduzir pela sua enorme produção de poemas nestes últimos tempos? Em Edge, escrito poucos dias antes de morrer, ela diz:

“A mulher ficou perfeita. /Seu corpo/ Morto sorri o sorriso da realização, A ilusão de uma necessidade grega/ Corre nos papiros da sua toga,/ seus pés/ Descalços parecem dizer:/ Fomos tão longe, acabou. /Cada criança morta encolhida, uma serpente branca,/ Uma em cada pequena/ Bilha de leite, agora vazias./ Ela as recolheu/ Novamente a seu corpo como pétalas/ De uma rosa fechada quando o jardim/ Endurece e os cheiros sangram/ Das gargantas profundas e doces das flores noturnas./ A lua não tem porque ficar triste,/ Vendo tudo de seu capuz de osso./ Ela está acostumada com esse tipo de coisa./ Suas rachaduras negras crepitam e arrastam”.

Conforme diz Alvarez, “ela transformou raiva, implacabilidade, e sua inflamada e aguda sensação de inquietude numa espécie de celebração”. Sua intensidade na escrita e fachada de aparente alegria, levou-o a não acreditar em “todas as evidências fornecidas pelos poemas”.

Em seguida, caminhando através da história, Alvarez nos leva através de um exame profundo e amplo, a conhecer o poder de atração que o suicídio exerceu e exerce sobre a imaginação humana ao longo da história. Desde os gregos, introdutores de certa tolerância pelo suicídio, os tabus existentes até então faziam com que enterrassem o cadáver fora da cidade, com a mão decepada e enterrada separadamente para evitar que fizessem algum mal aos seus parentes. Aponta como o primeiro dos suicídios comentados, o da mãe de Édipo, Jocasta, “saída honrosa para uma situação intolerável”. Em Homero suicídios são relatados como algo natural e em geral heroico. Apenas as melhoras razões eram causa de suicídios entre os gregos: por pesar, por princípios patrióticos ou para evitar a desonra. Nunca seria aceito se parecesse um ato de desrespeito aos deuses.

Sócrates, embora repudiasse o suicídio, bebe a cicuta com entusiasmo, pois, em raciocínio sereno, faz da morte “a porta de entrada para o mundo das presenças ideias, da qual a realidade terrena é apenas uma sombra”. Através de Platão, o suicídio se torna um ato racional e justificável para aqueles cuja vida se tornou imoderada, ou uma doença dolorosa apareceu.

Em Roma, de acordo com o código Justiniano, um cidadão comum não seria punido se o seu suicídio fosse causado por “intolerância à dor ou à doença, ou por outra razão, ou por fastio da vida. […], loucura ou temor da desonra”. Na Roma imperial os cidadãos se divertiam com a morte, fossem gladiadores, fossem os que para ganhar dinheiro se ofereciam aos espetáculos cruéis, e assim, por consequência, os cristãos parecem ter transformado a sede de sangue dos romanos e o hábito de suicídio em instrumentos de glória e salvação. “O martírio foi uma forma de perseguição na mesma medida em que foi uma invenção cristã”.

A autoridade de Santo Agostinho, no séc. V d.C., desenvolve a opinião pública contra os suicidas e em 533 d.C. o Concílio de Orléans proíbe honras fúnebres a todos os que se matassem quando condenados por algum crime.

Com Durkheim, na França, em 1897, o ato visto como vergonhoso e escondido para debaixo do tapete começa a se tornar objeto de inúmeras pesquisas científicas. Ele publica O Suicídio: um estudo sociológico, e outros estudos aparecem em seguida. Ligados então ao clima ruim, à idade (adolescentes, ou idosos), e outras razões, inúmeras estatísticas são apresentadas, mas, “apenas estratégias para aviltar um ato que não pode ser negado nem revertido”.

Os pesquisadores, segundo Alvarez, embora pessoas sérias, bem informadas, às vezes até sensíveis, escrevem sobre o que não tem aparência de real, pois, “quando escrevem não parecem interessados em seres humanos”. Ele ainda apresenta vários outros estudos, para dizer que “ninguém se mata a não ser que haja algo de errado com a sua vida”.

Alvarez estranha haver tão poucas teorias psicanalíticas sobre o suicídio, porém considera a afirmação de Freud de que Eros e Tânatos estão desde o começo da vida em perene trabalho: o primeiro para unir, renovar, preservar, e o outro para desunir, desatar conexões, destruir. Aponta ainda para M. Klein e sua teoria como aquela que aceita o instinto de morte como conceito clínico básico.

Para Alvarez, um dos objetivos do tratamento psicanalítico seria auxiliar o paciente a entrar em contato com o elemento destrutivo sempre em ação dentro dele. Em síntese, diz ele, as teorias psicanalíticas comprovam que os processos que levam pessoas a pôr fim à vida são tão complexos e difíceis quanto aqueles através dos quais elas continuam a viver.

Cita Freud (1917 p. 285), em Luto e Melancolia, onde temos a comparação entre o suicídio e o estado de paixão: “Nas duas situações opostas, de paixão intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras totalmente diferentes”. Comenta alguns suicídios de pessoas famosas, para também lembrar de suicidas crônicos, alcoólatras e viciados em drogas, que buscam a morte lenta e gradualmente.

Chegando ao final de seu estudo, chegamos também à sua confissão de ser um suicida malsucedido. Depois de recuperado de sua tentativa, nos conta sobre seu desespero ao tentar morrer: “desespero puro, imaculado, como o desespero final e sem resposta que uma criança sente, sem antes e sem depois”.

Ao aceitar que não haveria resposta alguma, nem mesmo na morte, estar feliz ou estar infeliz deixaram de ter importância, o que segundo ele, já “é o início da felicidade”. Confessa que o jovem que tomou os comprimidos para morrer e o homem que sobreviveu são tão diferentes um do outro que lhe parece que alguém ou algo morreu. Reconhece que não gosta muito daquele que se foi, e acredita que, no entanto, talvez ele fosse, em seu jeito pedante, mais fácil de se gostar. Termina dizendo que fica intrigado com psicólogos e sociólogos “que tratam o suicídio como uma doença”, assim como com católicos e muçulmanos “que o consideram o pior dos pecados”. E afirma: “A mim me parece que o suicídio está, de alguma forma, tanto além da profilaxia social ou psíquica, quanto além da moral, e que é uma reação terrível, mas absolutamente natural às necessidades forçadas, estreitas, e antinaturais que nós às vezes criamos para nós mesmos”.

Alvarez, A. (1999) O Deus Selvagem. São Paulo, Companhia das Letras.

Freud, S., (1917) Luto e Melancolia. In S. Freud. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (trad. J. Salomão, Vol XIV pp 271-291) Rio de Janeiro: Imago (trabalho original 1915)

Gorz, A. (2008), Carta a D. História de um amor. São Paulo: Cosac Naify

Malcolm, Janet, (2012).  A Mulher Calada. São Paulo: Companhia das Letras