“O Ancião dos Dias” – William Blake – 1794

Satã estava muito angustiado com toda a sua alegria dolorida que vivia no Inferno. Como todas as vezes que essa angústia se abatia sobre ele, decidiu dar uma volta fora dos domínios do Inferno para tomar uma fresca, um vento na cara e ver se melhorava.

Primeiro passou pela Terra, que era o lugar que ele mais gostava de passear. Para ele, a Terra era seu Nordeste, onde relaxava nas férias escondidas que tirava de vez em quando. Mantinha sempre um de seus demônios de plantão, caso precisasse voltar com urgência para o Inferno. Assim, no caso de ter que fazer a deliberação de algum castigo para um pecado que ainda não houvesse jurisprudência. Isso era raro, a maioria dos pecados era conhecida, mas de vez em quando surgia uma novidade.

Pois bem, estava Satã passeando pela Terra e sua angústia não melhorava. Sentiu que se aliviou um pouco, mas precisava ver coisas mais fortes, sentir emoção mais forte que suplantasse a sua angústia. Definitivamente, muitos pedaços da Terra estavam parecidos com o Inferno!

Então, pensou em ousar. Fazer o que era proibido até mesmo para Satã: dar uma chegadinha lá no Céu e ver como andavam as coisas por lá. Será que ainda estavam naquela eternidade de entonação de hinos de louvor, todos de branco dividindo o divino néctar que nem comunistas?

Bom, lá foi ele. No portão do Céu foi recebido por Gabriel com uma cara esquisita que parecia dizer: Mais essa agora! Já que anjos não podem nem pensar coisas como: Que merda, saco, era o que faltava esse filho da puta aqui!

Satã se divertiu ao perceber um anjo celestial com uma expressão entre preocupado e bravo. Não via isso desde a sua Queda. Começou a achar que era ali mesmo que curaria sua angústia.

Disse a Gabriel: “Oi cara, quanto tempo! Tava com saudade!”

Gabriel desconfiado respondeu: “Sei! Você nem sabe o que é isso!”

Satã retrucou: “Gabriel, posso estar em outro time agora, mas ainda sei quem é meu
Criador e Pai. Claro que eu preferiria ter me criado por mim mesmo, mas… “

Esse Satã era ardiloso com as palavras. Em seguida disse: “Será que eu não poderia dar uma palavrinha com o Pai, só por um tempinho, pra matar a saudade? Vai, por favorzinho?”. A primeira reação de Gabriel foi negar veementemente. Mas ao fazer isso deixou escapar que o Pai não estava num bom dia.

Satã ficou intrigado: “Como assim Deus não está em um bom dia? E isso existe? Deus sofrendo?”

Gabriel percebeu que falou demais. Estava pronto para bater o Portão do Céu na cara de Satã, quando lhe ocorreu uma ideia iluminada. Talvez o encontro de Deus e Satã pudesse dar uma animadinha em Deus. Este parecia tão apático para Gabriel que valia a tentativa de O estimular.

Mesmo que a energia do ânimo viesse pela raiva de encontrar anjo tão rebelde e ingrato. Claro
que isso revelaria uma faceta de Deus que sempre foi mantida em segredo. A face de seus bloqueios criativos nos quais ele ficava na ponta extrema da desesperança. Somente os anjos mais próximos sabiam delas, e nestes períodos resguardavam Deus até que ele melhorasse.

Mas, do jeito que estava desta vez, a sustentação do conjunto da Criação de Deus estava sob ameaça maior que a dos demônios de Satã.

Assim, Gabriel disse a Satã que concederia cinco minutos da eternidade para um encontro entre os dois. No entanto, começou a se arrepender de sua decisão assim que viu o êxtase na cara de Satã. Chegou até a cogitar que essa sua ideia já era influência da presença do Rei das Tentações. Mas seguiu em frente com a ideia.

Satã estava excitadíssimo! Pensava consigo mesmo que talvez fosse sua chance de sentar no Trono Celestial e triunfar. E pensar que nem planejou nada, heim? Nenhum ataque ou guerra.

Só saiu pra tomar uma fresca e a oportunidade apareceu!

Eles seguiram por um caminho que Satã mantinha na lembrança, da época que ali morou, como cheio de Luz e que, à medida que se aproximava de Deus no Trono, a Luz era cegante para todo ser Mortal.

No entanto, quando Satã ficou frente a frente com Deus e viu o estado em que Ele estava, quase não O reconheceu! Estava abatido, sem aquela sua Luz forte que cega os mortais. Tão apagadinho o Deus. Achou que a batalha seria fácil demais. Satã até teve o movimento de recuar, mas era Satã, né?

Então, disse: “E aí Pai? Que conta de novidade? Que cara estranha!”

Deus, apesar do abatimento, reconheceu Satã, estranhou sua presença ali, mas respondeu: “Faz um longo tempo que olho para os homens lá embaixo e sinto tanta dor. São tão frágeis e ingênuos. Brigam por qualquer coisa. Não se entendem. Dei a Natureza, apresentei a Liberdade, a Criatividade, tantas coisas para eles e ainda não perceberam o que podem fazer. E eles mesmos sofrem tanto, é tanta dor… Muitas vezes os vejo se debatendo presos em correntes imaginárias… Talvez não tenha sido boa essa ideia da Criação, não. Estou pensando em acabar com tudo!”

Satã se assusta: “Tudo?!? Tudo o quê?”

Deus: “Tudo mesmo. Com a Terra, o Céu e o Inferno. Assim, acabo com o sofrimento de
todos, inclusive o seu.”

Neste momento Satã se sente ameaçado. Há muito tempo ele havia percebido que acabar com seu sofrimento era acabar com sua própria existência. Dor, raiva, inveja, guerra eram seus órgãos vitais. Sabia que outros eram constituídos por órgãos vitais diferentes, tais como Amor, Respeito e essas coisas que ele nem queria mais saber que existiam (inclusive dentro dele, já que sua primeira casa foi o Céu). Ele era o Inferno, portanto sua casa. Gostava de ver na Terra o colorido de ações dos Mortais imersas neste caldeirão de sentimentos e emoções celestes e infernais, resultando numa coisa que chamava humanidade, apesar de não compreender muito bem do que tratava. Afinal, ele não era humano. E o Céu? Ah, como ele gostava de odiar o Céu! Assim, percebendo sua existência ameaçada, numa virada do destino, ao invés de curar sua angústia, decide ajudar com a profunda tristeza de Deus. Mas como?

Primeiro decide ganhar tempo, usar toda a sua sabedoria enrolando Deus numa conversa até que pudesse pensar em algo. Viu um tal de Freud que fazia isso e batizou a técnica de Psicanálise. O cara se punha para conversar bastante com outro humano, pedia umas tais de associações e quando o interlocutor menos esperava, Freud juntava uns elementos, formulava uma frase e falava para a pessoa. Geralmente a pessoa se espantava, mas na falta de coisa melhor funcionava.

No entanto, lembrou que seu tempo com Deus era curto. O chato do Gabriel já apareceria por lá, porque era super certinho com horários. No desespero, Satã chegou a pensar: Meu Deus, o que eu faço com Deus? Mas assim de repente, sem saber muito bem o que fazia, as seguintes palavras saíram de sua boca com certa audácia e fúria: “Deus, eu te PROÍBO de fazer isso!”

Assim que ouviu suas próprias palavras Satã pensou: “Pronto, a merda tá feita!”. Deus levanta sua cabeça pela primeira vez e olha diretamente para Satã. Este não identifica o que está acontecendo. Sabe que desafiou Deus e se coloca pronto para o ataque. Percebe que Deus recupera a pose onipotente. Sua Luz vai ficando cada vez mais intensa. Ele se aproxima de Satã vagarosamente. Quando o espaço entre eles é de um fio de cabelo mortal, Deus diz: “Ser Infernal, ousa proibir a realização da vontade de Deus? Já tentou isto uma vez e não se lembra o que aconteceu?”

Satã ergue sua espada pronto para se defender quando é surpreendido por uma enorme gargalhada de Deus. A espada cai de sua mão ao observar surpreso tal reação divina. Depois de instantes Deus fala: “Deveria te agradecer por me lembrar quem Eu sou! Mas como sou Deus e onipotente agradeço a mim mesmo! Satã, contente-se em voltar para seu Inferno. Suspendo a ordem de descriação do mundo.”

Em seguida, Gabriel aparece e Deus ordena que este escolte Satã para fora dos domínios
do Céu.

Ao escutar os portões se fechando e, mais uma vez, sendo excluído, Satã percebe que sua angústia havia passado, mas estava tomado por revoltada tristeza. A dor estava cada vez mais pulsante em seu Ente Infernal. Porém, seguindo em direção aos domínios do Inferno, dando uma olhadinha nos Mortais da Terra, pensou que eles estavam em dívida com ele. Afinal, ao desafiar Deus, a Criação teve uma segunda chance de existir. Pensou: “Quem diria, eu salvando a humanidade! E ninguém nunca saberá disso.”

E assim, sendo Satã, falou: “Mas essa dívida eu vou cobrar!”

Por Maira Cecília Avi, membro filiado da SBPRP