por Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP

Um jovem, recém chegado do interior, prepara-se para assistir às primeiras aulas na Universidade. Tímido, observa grupos de alunos que conversam entre si. Senta-se ao lado de uma moça e tenta se entrosar. Trocam amenidades, até que a moça pergunta:

– Você é do interior, não?

– Sim, sou.

– E na sua cidade tem um campus da USP, não tem? Lá também tem esse curso…

O calouro balança a cabeça afirmativamente, ressabiado. Então, ela prossegue, com um tom altivo:

– Então, o que você veio fazer aqui em São Paulo?

Ele sente um frio na barriga. “Será que isso é uma amostra do bairrismo paulistano de que tanto ouvi falar?”

Lembrei dessa história há alguns dias, enquanto lia uma matéria a respeito da violência no Norte do Brasil. No último dia 18 de agosto, um grupo de moradores de Pacaraima, Roraima, ateou fogo aos pertences de imigrantes venezuelanos que estavam acampados nas ruas da cidade.

Pacaraima faz fronteira com a Venezuela, país que vive uma crise econômica e social catastrófica. Alguns de seus habitantes veem na imigração para o Brasil uma alternativa para fugir do caos. Nos dias que se seguiram ao ataque, ganhou força um movimento de políticos brasileiros que requisitavam o fechamento da fronteira. Em Pacaraima, a horda ensandecida entoou o Hino Nacional enquanto a fogueira ardia. Em outros tempos, pensei, teriam queimado os próprios imigrantes, ao invés de cobertores, barracas e roupas. O estopim para esse show de horrores teria sido um furto violento realizado por venezuelanos contra um comerciante brasileiro.

Ora, não sou conivente com violência e espero que os assaltantes sejam punidos com todo rigor, mas, convenhamos, pouca coisa sobraria de pé no Brasil se resolvêssemos queimar os pertences dos conterrâneos dos ladrões que conhecemos. Banir imigrantes, além de ser uma atitude inócua, é hipócrita. Não estamos rodeados por vestais e sabemos disso.

Imagem: pixabay.com

A questão da imigração é parte essencial da história da Psicanálise. Nascido em Freiberg, que pertencia ao Império austríaco, Freud faleceu na Inglaterra, escapando da perseguição implacável dos nazistas. Nem todos os membros de sua família tiveram a mesma sorte. A vienense Melanie Klein optou por viver e trabalhar em Londres. Wilfred Bion nasceu na Índia, tendo residido posteriormente na Inglaterra e Estados Unidos. Fico apenas com os três, mas a lista é enorme. A Psicanálise brasileira, em especial, deve muito à vinda de analistas estrangeiros, alguns dos quais perseguidos em seus países de origem.

Analistas sempre foram indesejáveis em países governados por autoritários. Uma ciência que preza a liberdade e a busca pela verdade não poderia mesmo agradar a quem se perpetua no poder pelo uso da força e da intimidação.

Do ponto de vista psicanalítico, o imigrante indesejável encarna (em fantasia) aquilo que temos de pior, principalmente em momentos de crise. Sobre ele, recaem as mais variadas projeções. É o depositário da nossa ganância, da falta de limites, do machismo, da violência e sordidez que preferimos não enxergar em nós mesmos. Ele é o perigo encarnado, a causa (imaginária, evidentemente) de nossos problemas. Os nazistas diziam que os judeus eram perigosos, pouco confiáveis e depravados que vinham para roubar os empregos e destruir a Alemanha. Persegui-los seria, na ótica nazista/esquizo-paranóide, um ato de defesa. Na Europa atual, uma nova onda de xenofobia se espalha. O enredo se repete: o imigrante é o culpado, se nos livrarmos dele viveremos em paz. Hoje são os venezuelanos, ontem foram italianos, japoneses, africanos, árabes… Imigrantes sempre têm histórias para contar a respeito de episódios de xenofobia.

Entretanto, é bom mencionar, se deposito imaginariamente no outro tudo aquilo de que não gosto em mim, sigo alienado sobre quem sou, tropeçando vida afora nas consequências da minha cegueira. Afinal, boa parte do ganho que pode ser obtido em uma análise consiste precisamente nisso: na possibilidade de identificar em mim as mazelas que estou habituado a observar nos outros. Se percebo o que tenho de destrutivo e doentio, talvez possa fazer algo a respeito.

Retorno à história do calouro.

Indagado sobre o quê teria vindo fazer na Capital, ele experimentou uma amostra ínfima, mas dolorosa e inesquecível, do que significa sentir-se hostilizado em uma terra estranha. Felizmente, os outros colegas de sala foram mais acolhedores, especialmente os paulistanos.

Espero que os indesejáveis de Pacaraima saibam que a horda violenta que os atacou não nos representa.  Ao menos, não totalmente.