por Luiz Celso Castro de Toledo, membro filiado da SBPRP
Assisti, com atraso, ao documentário “O renascimento do parto”, de Érica de Paula e Eduardo Chauvet, que recebeu vários e merecidos prêmios no Brasil e no exterior. O filme é emocionante e intenso, especialmente para quem já passou pela experiência de acompanhar de perto o nascimento de um bebê, e me parece indispensável para quem ainda não se tornou mãe ou pai. Seja qual for o seu caso, não deixe de vê-lo.
Tentarei não estragar a surpresa.

Ao longo de uma hora e meia, que passa voando, os diretores nos apresentam entrevistas e imagens do dia-a-dia de doulas, médicos, enfermeiras obstétricas, mães e pais que contam a respeito de suas experiências profissionais e pessoais com gestações e partos. Parêntese: doulas são profissionais que auxiliam e assistem aos novos pais antes, durante e no período que se segue ao parto, provendo apoio emocional e cuidados físicos. Para quem quiser saber mais a respeito, recomendo o site do Despertar do Parto.
O filme não esconde seu caráter militante. Desde o início, o posicionamento dos entrevistados fica evidente. Ao final, senti que os cineastas nos trataram com respeito, expondo com franqueza suas convicções. Trata-se de uma defesa apaixonada do parto humanizado.
No Brasil, o normal (no sentido da norma estatística, do mais frequente) é que a maioria dos partos ocorram por cesarianas. No setor privado, cerca de 85% dos partos realizados em 2016 se deram de forma cirúrgica. Na rede pública, as cesáreas também superaram os partos normais. Uma ressalva fundamental: cesáreas realizadas de forma adequada e com critérios bem definidos são potencialmente salvadoras de milhares de vidas, a questão é que esse nem sempre é o caso.
O problema não é exclusivamente brasileiro, mas nossos números são muito expressivos e preocupam a Organização Mundial de Saúde. Por quê? Por razões objetivas. Números muito elevados de cesáreas indicam, entre várias outras complicações, riscos maiores para bebês e suas mães.
Considerando que durante séculos as mulheres deram à luz acompanhadas por parteiras ou familiares e que a humanidade não se extinguiu, pelo contrário, resta saber porque o parto normal deixou de ser o mais comum entre nós.
Paula e Chauvet oferecem hipóteses. As cesarianas podem ser realizadas com hora marcada, o que facilita a rotina de hospitais, médicos e enfermeiros. São mais rápidas (e mais baratas) do que um parto normal, que pode estender-se indefinidamente. Dão a ilusória sensação de segurança para os profissionais e pais. São requisitadas pelas mães que estariam sendo doutrinadas desde cedo para temer esse momento por centenas de filmes, livros e novelas que abordam o assunto de forma sensacionalista.
Enfim, após o filme me lembrei do “Livro Disso”, de Groddeck. Para quem não conhece, Groddeck foi um dos pioneiros da psicanálise e da psicossomática. No início dos anos 20, publicou o “Livro Disso”, uma série de cartas escritas por um médico imaginário (Patrik Troll) para uma amiga. O livro é genial, ousado e vigoroso, tão inspirador que Freud decidiu utilizar o termo escolhido por Groddeck, “das Es” (que, entre nós, ficou conhecido como “Id”, por conta da tradução da versão britânica das Obras Completas), na sua segunda tópica.
Em uma das cartas do livro, Troll descrevia à sua amiga a admiração e a inveja que sentia das mulheres e da sua capacidade de conceber uma criança. Para o personagem, os sinais desses sentimentos estariam dispersos em nossa linguagem cotidiana. Não seria estranho, por exemplo, ouvir da boca de um homem que uma de suas ideias está “em gestação”, ou que um trabalho no qual ele esteve empenhado arduamente foi “um parto difícil”. Expressões como essas seriam vestígios da frustração e da inveja masculina diante de um fato incontornável: a gestação e o parto são experiências femininas, com um papel masculino restrito e menor.
Depois de reler Groddeck, me peguei pensando: será que, além das questões apresentadas no documentário, não poderíamos supor que essa profusão de cesáreas também possa ser consequência da nossa inveja da capacidade feminina de conceber?
Justamente, uma das conseqüências da medicalização excessiva dos partos, denunciada e combatida pela OMS, é essa: destituir das mães o protagonismo do parto, entregando-o aos profissionais que as atendem, transformando um processo natural em algo como uma linha de produção em série, que não respeita o tempo, o amadurecimento e as condições psíquicas e somáticas nem da mãe, nem do feto.
Seja como for, é curioso notar que a inveja mencionada por Groddeck tornou-se menos conhecida pela comunidade psicanalítica no correr dos anos do que, por exemplo, a inveja do pênis, descrita por Freud. Ou, ainda, do que a inveja no sentido kleiniano.
A inveja feminina é nossa velha conhecida, a do bebê também. Já a inveja masculina da capacidade de gerar a vida, nem tanto.
Talvez, enfim, tenhamos recalcado Groddeck e a nossa inveja do útero.
Bom filme.
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