Comentário sobre o filme “O Último Grande Herói” do diretor John McTiernan para o Cinema e Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto[1]

Maira Cecília Avi[2]

Introdução/Expectativas

Conversar parece algo comum e até fácil, porque a gente se vê falando o tempo todo. Mas se prestarmos atenção veremos que não é tão simples. Quando conversamos promovemos um encontro no qual, além da gente se expor a emoções, sentimentos, também podemos encontrar algo que não sabíamos sobre nós mesmo ou sobre o mundo que estamos. Isso pode dar medo, mas, ao mesmo tempo, nos dá a possibilidade de criar a novidade. A medida que nos expomos ao contato com o novo, a conhecer mundos diferentes, vamos ampliando nossos horizontes no sentido de sermos mais de nós mesmos e não para deixar de ser quem somos. Penso que ser mais de nós mesmo tem a ver com a busca de todos nós por existir, sentir e conhecer nossas potencialidades.

Conversar é compartilhar e minha expectativa é de compartilhar com vocês as impressões que tive sobre o filme e o caminho que meu pensamento percorreu, esperando que possam fazer o mesmo comigo.

Quando penso no Cinema e Psicanálise, lembro da professora do Danny no filme relacionando os personagens de Shakespeare com heróis de ação e luta. A sua tentativa era de aproximar dois mundos, a literatura e a vida cotidiana, acreditando que ao apresentar um novo universo parar os alunos, desencadearia algo de bom. Eu aqui, mostrando um filme para vocês, também estou buscando um meio de conversar sobre alguma coisa de Psicanálise que considero interessante.

A Psicanálise lida com emoções, pensamentos e busca ampliar a percepção das nossas experiências da vida cotidiana. Em certo momento do desenvolvimento do pensamento psicanalítico, alguém (Bion) formulou algo mais ou menos assim: Perceber o extraordinário que existe em cada ordinária experiência que vivemos em nossa vida cotidiana. Somos seres humanos comuns, mas o fato de sermos únicos também nos faz extraordinários.

Então, tentando alcançar algo “extra” de uma experiência comum, quero pedir que se perguntem: O filme despertou alguma coisa em vocês? E o que ele não despertou? Penso que é importante que se desperte emoções e questões, mas eu costumo também pensar no que o filme não me despertou, porque a falta também aponta caminhos. Qual é o “extra” para cada um de nós em relação à experiência de assistir a este filme aqui?

Também fico curiosa sobre nossa experiência aqui hoje. Sairemos com algo novo? Ou manteremos as certezas de sempre? Nós conversaremos mais por palavras ou mais por silêncios? Estas são questões que passeiam em minha mente.

Encontro com o filme

Filme “O Último Grande Herói” (Imagem: Reprodução)

A primeira vez que assisti a este filme, eu era uma adolescente nos anos 90. Estou dizendo isso, pois noto que esta Maira adolescente está comigo fazendo este comentário. De certa maneira, ela me ajuda com a linguagem, as roupas e os costumes daquela época. Além disso, esta adolescente está mais próxima do garoto Danny do filme. Eu fico contente de ainda poder manter contato com ela, porque sinto sua ajuda em muitas conversas que tenho.

Lembro que na época, apesar do filme mostrar um adolescente constantemente bombardeado pelo desinteresse dos adultos nele (em certo momento, ele mesmo se definir como o coadjuvante cômico da história), ainda assim o menino era o herói do filme para mim. Afinal, ele era corajoso, paciente, esperto e persistente ao participar da história e expor seu ponto de vista. Danny buscava o “extra” das experiências que vivia.

Então, fui convidada para comentar um filme e este foi o primeiro que me ocorreu. Seria a minha jovem dos anos 90 dando a ideia? Porém, meu pensamento seguinte foi: Mas comentar um filme do Schwarzenegger no Cinema e Psicanálise? Aí me peguei pensando: Será que eu estava fazendo o mesmo que os personagens do filme faziam com Danny, isto é, não o considerando por ser alguém que teria pouco a contribuir?

Pesquisando um pouco sobre a história do filme, descobri que ocorreram muitas controversas nos bastidores, orçamento milionário estourado e muitas mudanças de roteiro. Como se não bastasse, o seu lançamento foi prejudicado pelo lançamento uma semana antes do filme Jurassic Park. Assim, enquanto as filas nas bilheterias do filme de Spielberg cresciam, as deste filme praticamente não existiam, gerando um tremendo fracasso financeiro para o estúdio que o produziu. E ninguém queria falar de um fracasso deste tamanho.

Notei que a situação se apresentava novamente para mim, isto é, o filme sendo desconsiderado. Será que tirar este filme da sombra agora traria luz sobre alguma questão interessante? Ele teria algo de “extra”?

Depois observei que esta poderia ser uma questão. O que fica na sombra e o que fica na luz para cada um de nós?

Caminhos

Pensando no filme e observando o que ele ilumina, acredito que o uso da metalinguagem como meio de contar uma história nos dá a oportunidade de explorar alguns campos. Este filme “olha para ele mesmo” o tempo todo e, assim, vai nos apresentando as referências do mundo do cinema que gerou a sua própria existência e que o alimenta (sustenta).

Por exemplo, o fato de ser um filme de ação expondo todos os clichês dos filmes de ação com humor me leva a pensar em nossa capacidade de rir de nós mesmos.

Também poderíamos conversar sobre a necessidade que, por vezes, temos de usar “clichês”, ou contatos automáticos e desvitalizados que ofuscam nossa espontaneidade e o estabelecimento de relações genuínas.

Da mesma maneira, outros aspectos deste “olhar para nós mesmos” poderiam ser enfocados. Creio que falarei disso mais para frente.

Por enquanto, pensando em mim que estou acompanhada da minha adolescente, uma das sacadas do filme é criar uma parceria inusitada que permite aos parceiros transitar por mundos diferentes e desconhecidos. Ele aponta para o entre desta relação. Ao invés de observarmos um garoto que vai ao cinema e que idealiza seu herói para fugir de uma realidade de desamparo e solidão ou para o herói potente que vence todos os desafios, o filme cria a possibilidade de uma conversa entre o mundo do garoto e do herói. A troca de experiências entre estes mundos gera transformação tanto na vida de Danny, quanto na vida do Slater. Assim, o filme privilegia o eu e você como nós, e não o eu sou eu e você é você. A individualidade existe e é bem-vinda, especialmente na formação desta parceria.

Mas não é só isso. Eu me pergunto: Como é para a gente experimentar outros mundos? O que nos acontece quando frequentamos universos que parecem tão diferentes do que conhecemos? Neste filme Danny e Slater viveram a experiência de entrar no mundo (desconhecido) um do outro. Suportaram não saber o que estava se passando em muitos momentos (mesmo Danny não sabia tudo) e ainda assim, formaram uma parceria. Acredito que isso tenha algo a ver com Psicanálise.

Voltando ao filme, vamos explorar alguns mundos apresentados.

No começo vemos o mundo do herói. Cheio de exageros, pessoas gritando e dando ordens, mas sem serem ouvidas. Enfim, ações sendo realizadas, mas sem algum sentido para elas a não ser o de simplesmente demostrarem movimento ou produzirem barulho. Estas ações culminam na aparição de um herói de ação – Slater. Infalível, inabalável e temido por todos.

Caminhamos um pouco por ele até que o herói se envolve numa situação em que a intensidade emocional é explosiva. Mas não conseguimos saber se ele sobreviverá. A imagem fica desfocada e logo somos transportados para outro mundo.

Neste há um menino solitário, Danny, que vive em uma região perigosa de Nova York. Ele está fugindo da aula e buscando proteção no cinema, mais especificamente, no mundo do herói inabalável de cinema. Aos poucos vamos percebendo que o projetista do cinema é o único que consegue ter uma interação de qualidade afetiva diferenciada com o garoto. Infelizmente a mãe de Danny, que parece muito amorosa, precisa se ausentar muito. Para piorar ele é assaltado. Isto amplifica seu desamparo, o que o faz se abrigar novamente no cinema. Este parece ser seu modo de se desconectar das dores de sua jovem e desamparada existência. Ou seria um jeito de buscar esperança para sua existência?

Há ainda um terceiro mundo no qual nós ocupamos as cadeiras do cinema e somos espectadores. Assim, nós também transitamos por estes mundos apresentados no filme e, ao mesmo tempo, vivemos no nosso mundo de espectadores. Percorrer estes caminhos gera transformações, afinal estamos nos expondo a sentir, conhecer e pensar. E isto pode ser desejado e temido. Basta pensar em como escolhemos um filme para assistir. Dentre os muitos fatores que influenciam esta escolha, destaco dois: escolher algo que sintonize com o que estamos sentindo no momento, ou escolher o que nos afaste do que estamos sentindo.

Pensando em trânsito e transformações nas nossas vidas, lembrei da jovem Maira que existe em mim hoje e me ajuda nos comentários. Se é assim, cabe a questão: A gente transita dentro da gente também? Quantos mundos nós frequentamos em nós mesmos? Não penso que saberíamos responder esta questão com precisão, mas percebo que a medida que esta pergunta é feita, ampliamos o contato com o mundo que existe em nós. Se pudermos imaginar cada pessoa como um universo único e, portanto, “extraordinário” consideraremos que todos merecem ser observados, pois podem contemplar belezas, aventuras, dores, tragédias e mistérios, assim como o nosso mundo particular.

Mas para que serve esse negócio de ampliar a observação da gente mesmo?

Bom, vamos voltar ao filme e ver como eles apresentam este trânsito e se eles dão uma dica sobre esta questão.

Danny parece fazer a ponte entre seu mundo e o de Slater, acreditando que conhecer o mundo de Slater o ajudaria a encontrar forças para se manter vivo diante dos desafios que a vida lhe colocava. Ele experimentava a sua frágil e delicada condição humana e buscava no mundo do herói a coragem para enfrentar seus desafios.

No entanto, depois que Danny entra no mundo de Slater, ele se esforça para mostrar ao seu herói que aquele não era o único mundo que existia. Com paciência e procurando não ofender o herói, ele vai encontrando um jeito de mostrar que acreditava no Slater e buscava aprender alguma coisa com ele. Mas também aponta que o herói podia aprender algumas coisas com ele, como a vulnerabilidade. No entanto, Danny só identifica a importância de o herói se saber vulnerável quando passa a perceber a solidão na vida do herói. E Danny tinha muita experiência com solidão.

Além disso, o garoto acreditava que seria bom para Slater conhecer outros mundos, especialmente porque percebia a influência destes mundos na vida do herói. Mais para frente vemos que o inverso também se torna verdadeiro, ou seja, o que Slater conhecia podia ajudar Danny em seu mundo.

Danny, frequentando o mundo de Slater se vê com atitude e energia para fazer uma perseguição de bicicleta ou operar um guindaste. Ações que de algum modo o fazem se sentir capaz e acreditar na sua condição de enfrentar desafios cada vez maiores também. Mais tarde, em seu mundo ele dirige uma ambulância para salvar a vida do herói. Se observarmos isto do ponto de vista de espectadores, podemos fazer um paralelo com nossas vidas lembrando de momentos que buscamos nossa coragem para lidar com situações desafiadoras

Em relação à coragem: Danny acreditava buscar coragem. Mas penso que coragem nunca faltou ao garoto. Talvez o fato de viver uma vida solitária o tenha desmotivado a acreditar nele mesmo e de fazer uso da coragem e dos outros recursos (inteligência, esperteza, compaixão) que ele tinha. Mas a experiência de frequentar o mundo do Slater estimula o garoto a por sua coragem e seus recursos em prática.

Fazendo um paralelo com a nossa realidade, penso em crianças brincando. Pois, através da brincadeira elas exercitam o trânsito nos mundos que frequentam. Se observarmos crianças, veremos que cada brincadeira (luta, dar comidinha, encaixar blocos, construir casa e mesmo nos meios eletrônicos) promove que elas se exercitem no trânsito de suas experiências emocionais, isto é, seu contato com o mundo que as cerca e as emoções geradas neste encontro.

Para Slater, a aventura (ou devo dizer brincadeira?) acontece quando vai para o mundo de Danny, pois descobre que ser Herói era apenas uma dimensão sua de muitas. Ele precisará deixar de lado o que já conhecia dele mesmo e buscar por suas outras possibilidades, por exemplo o ator que o interpreta. Nesta trajetória de busca por ele mesmo, Slater compartilha com o garoto o desamparo. Afinal, quem é ele mesmo? Apesar de desiludido com sua origem, abre-se um campo para novas descobertas como, por exemplo, Mozart.

A partir deste momento, ele vai se dando conta de sua dimensão frágil e de como precisa protegê-la, pois não tem a certeza de chegar vivo ao final.

Costumo imaginar cada ser humano como um conjunto de mundos. A Psicanálise Contemporânea fala de um modelo de multidimensionalidade da mente. Isto seria algo próximo de nos observar por ângulos diferentes e alguma vezes até contraditórios. Assim, às vezes a luz ilumina mais uma dimensão que outra. Em outros momentos, a escuridão favorece o aparecimento de outras dimensões.

Neste sentido, no filme quem aparece primeiro é o herói. Forte, sem medo, independente e até imortal. Depois, observamos o ator Schwazeneger. Bonito, bem casado, bobo, ingênuo e que precisa ser conduzido pela mulher e por agentes para se manter em uma carreira de sucesso. Acoplada ao ator está o dono de restaurante, preocupado em garantir uma boa propaganda. Sem falar no Schwazeneger que não vemos, mas supomos que existe.

Todos são a mesma pessoa, mas exposta de ângulos tão diferentes que parecem ser três pessoas.

Agora, chego a outra questão: Se por um lado podemos pensar que cada indivíduo é um universo diferente e com quem podemos formar ou não parcerias, por outro podemos imaginar que nós mesmos somos um universo desconhecido para a gente. Que parcerias fazemos (ou desfazemos) conosco?

Assim, o filme também me fez pensar na complexidade que é caminhar por mundos diferentes dentro de cada um e ainda assim ser UM (único).

Além disso, se transitamos em mundos diferentes, criando (ou não) parcerias com a gente mesmo ou com outras pessoas, estamos falando de relações. Isto nos leva a observar e questionar a qualidade das relações que estabelecemos. São relações de amizade, amorosas, de comércio, de guerra? Queremos que permaneçam ou buscamos transformações?

Acredito que ao observar e sentir amplamente o mundo que existe em nós, encontraremos não só nosso garoto desamparado e vulnerável ou o herói com quem ele faz parceria, mas também outras tantas dimensões. E isto pode nos ajudar nas relações entre nosso mundo único e “extraordinário” e os outros mundos igualmente únicos e “extraordinários” que passam por nossas vidas e com os quais vivemos as mais variadas aventuras, também denominadas de relações.

Para encerra, vou ler um breve poema de Fernando Pessoa, que conseguiu através de seus heterônimos nos mostrar como somos muitos dentro de um único individuo.

Como é por dentro outra pessoa (1934)

 

Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;

As dos outros são olhares,

São gestos, são palavras,

Com a suposição de qualquer semelhança

No fundo.

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).

Maira Cecília Avi

mairaavi@yahoo.com.br

[1] Comentário apresentado no dia 21 de setembro de 2018 no Anfiteatro da Unidade de Emergência do HCFMRP-USP

[2] Psicóloga, Membro Filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto