por Luiz C. Toledo

Deixo o consultório no fim do dia e sigo a caminho de casa. Sinto o cheiro e a brisa da chuva que se aproxima depois de uma tarde quente. Procuro uma estação de rádio enquanto estou parado no semáforo, então ele aparece entre os carros.

Um homem maltrapilho, muito magro e sujo, com a barba longa e os cabelos desgrenhados. Seus olhos estão vidrados, mirando o vazio, como se ele não pudesse nos ver. Ele carrega acima da cabeça um papelão escrito à mão com letras trêmulas. Já está escuro e é difícil enxergar com clareza. No cartaz lê-se apenas: “Tenho fome. Ajuda”. A mensagem é tão concisa e direta que parece ter sido escrita às pressas, não é um “preciso de ajuda”, “por favor, me ajude”, nem nada parecido. É como o grito de um afogado, não há tempo a perder.

Já me deparei com pessoas e cartazes semelhantes em outros cruzamentos da cidade. O número de moradores de rua parece ter aumentado nos últimos anos. Será que a prefeitura pensa nessas pessoas como uma prioridade?

Ele caminha em direção aos primeiros motoristas da fila com a mão estendida. Procuro a carteira em minha pasta. Entre a agenda e alguns papéis avulsos, me pergunto: “será que ele tem fome de comida mesmo ou esse cartaz é um artifício para constranger?” Não simpatizo com quem tenta me manipular através da culpa.

A primeira hipótese que me ocorre é a de que talvez ele esteja à espera de uns trocados para comprar crack. Se eu lhe der algo talvez contribua apenas para amenizar o mal-estar que sinto e aumentar os ganhos do traficante, não para comprar comida. Então, algo me ocorre:

“Bem, e se for mesmo um viciado, sua fome seria menos dolorosa ou urgente do que a de uma pessoa faminta por comida?”

Assim, percebo que talvez eu considere a fome por comida mais legítima e digna do que a fissura (ou a fome) por drogas. E isso me parece moralista. Como assim?

Atendi a alguns usuários de drogas ao longo da vida, principalmente em hospitais. Participei do sofrimento daqueles que ficaram comigo (seja em terapia ou análise) quando, eventualmente, tentaram deixar de usá-las. Em se tratando de drogas pesadas, a abstinência costuma ser tamanha e tão insuportável, que mesmo os mais resolutos hesitam. Já conversei com pessoas que trocaram, sem pestanejar, bens, sexo, a própria reputação ou o que mais estivesse à mão por uma fileira ou uma “viagem”. Pensando a esse respeito me lembrei de um músico.

Na biografia de Miles Davis, escrita em parceria com Quincy Troupe, há uma passagem especialmente marcante. Viciado em heroína, como muitos outros jazzistas de sua época, ele decidiu se internar em uma fazenda com a ajuda da família para uma desintoxicação. A narrativa é trágica e impressionante. Miles passa dias no inferno, suando frio, tendo visões aterradoras, sem dormir e com dores lancinantes por todo o corpo. O desejo de usar alguma droga é avassalador, enlouquecedor.

“Não seria essa uma fome tão verdadeira quanto qualquer outra?”

Compreende-se porque alguns viciados não consigam ou nem se arrisquem a tentar deixar as drogas. É difícil ler o livro sem se perguntar se, em seu lugar, conseguiríamos enfrentar algo tão brutal. Alguns dos melhores músicos da geração de Miles morreram jovens por conta do abuso contínuo.

Imagem: pixabay.com

O farol ainda não abriu. Os primeiros pingos de chuva molham o pára-brisa. Olho em volta e, assim como o meu, todos os carros estão com os vidros fechados. Os nossos olhos também estão vidrados e embaçados.

“Como será que ele nos vê?”

Aqui estamos nós, protegidos, a caminho de casa, da família e de um jantar quente, enquanto ele provavelmente vai dormir sob uma marquise. A situação toda me parece, então, uma amostra contundente do nosso abismo e cegueira social.

“A que será que ele se refere quando nos avisa, como um náufrago, sobre a urgência da sua fome? Será que alguém já conversou sobre isso com ele?”

A chuva engrossa, gotas grandes caem ruidosamente sobre o capô. Finalmente encontro a carteira. Quando o procuro novamente, ele não está mais lá. Deve ter ido buscar um abrigo seco, imagino.

“Além da fome literal, quais outros tipo de fome torturam aquela pessoa?”

O sinal abre e os carros avançam.