por Luiz C. Toledo
Não sei quanto a você, mas não me lembro de ter ido ao cinema anteriormente com a expectativa de ouvir uma vaia.
Já vimos outros filmes em circunstâncias inusitadas, claro.
Talvez você se lembre de Je vous salue, Marie. O virtuoso governo de plantão decidiu que a trama de Godard era uma afronta e, com nostalgia da censura, decretou que estávamos proibidos de tirar nossas próprias conclusões. Vimos o filme em cópias escuras de VHS, temendo ser surpreendidos por algum fiscal da moral e dos bons costumes que nos apanharia em flagrante.
O caso de 2001, Uma odisseia no espaço foi diferente. Podíamos assisti-lo à vontade, mas sem a leitura prévia do livro de Arthur C. Clarke, o terço final do filme revelava-se um mistério insondável. Ver, tudo bem, acompanhar a história já era pedir demais.
Voltemos às vaias. Elas foram destaque em Uma noite em 67, o documentário sobre o III Festival de MPB da Record, no qual Sérgio Ricardo espatifou seu violão e Caetano brigou com a audiência. Nele, as vaias eram essenciais para o enredo, eram quase personagens do filme.
Mas ir ao cinema esperando por vaias vindas da plateia é algo mais raro. Afinal, sem a presença física dos atores e do diretor, como acontece nos grandes festivais, por que e para quem elas se dirigiriam?
Bohemian Rhapsody, o longa sobre Freddie Mercury e o Queen, estreou no país despertando essa curiosa reação. Várias de suas primeiras exibições foram acompanhadas por vaias em cenas nas quais o protagonista vivia encontros amorosos com outro homem. A mesma situação ocorreu em cidades diferentes, o que sugere algo como um boicote planejado.

Quem gosta de música sabe que material para escândalo não falta na trajetória da banda, o livro de Peter Hince (Queen nos bastidores…, Ed. Prumo) é recheado de situações absurdas. Não seria difícil filmar uma narrativa sensacionalista.
Para minha surpresa, o filme é respeitoso e emocionante. Bryan Singer, o diretor, apresenta a banda sem julgá-la. Os atores são convincentes inclusive quando tocam seus instrumentos (algo raro em musicais) e Rami Malek é um Freddie Mercury que escapa da caricatura, o que, por si, já é um feito notável.
Em relação à sexualidade de Mercury, o filme é contido, quase envergonhado. Quem foi ao cinema esperando por Sodoma e Gomorra deve ter saído decepcionado. Há uma cena aqui ou outra ali em que ele beija outros homens, uma nuance dos bares e festas da época e só. Na maior parte do tempo o filme trata de música, relacionamento com a namorada, conflitos emocionais e sofrimento por uma solidão persistente, além de grandes shows.
Para quem já assistiu a novelas ou a transmissão do carnaval carioca pela TV, o filme não apresenta nada que já não tenha sido visto de maneira muito mais explícita.
Então, por que alguém sairia de casa para vaiar deliberadamente a Bohemian Rhapsody? Eis algumas possibilidades.
O inseguro com a própria sexualidade vaia para demarcar terreno, como se dissesse para os outros e, principalmente, para si mesmo: “ele é gay, não me confundam, estou aqui pela música ou para lembrá-los, como um abnegado, que estamos assistindo a algo sujo e pervertido”.
Quem vaia se apresenta como “macho” e convida os demais a fazerem o mesmo. Se não vaiam, são cúmplices. Procura adeptos para o apedrejamento do outro ou pretende, no mínimo, constranger a parte mais liberal da plateia (e, claro, de si mesmo).
Ela também pode funcionar como um salvo-conduto, por permitir que aquele que hostiliza também sinta-se livre para se excitar, enquanto anuncia em altos brados a sua desaprovação. Freud deu um nome a isso: formação reativa. O moralista defende-se dos próprios conflitos e desejos sexuais reprimindo ou ridicularizando a sexualidade alheia.
A vaia pode servir, enfim, para tentar se convencer de que nada do que se passa na tela lhe diz respeito, mesmo que tenha escolhido assisti-lo de livre e espontânea vontade.
E, convenhamos, só alguém muito desinformado iria supor que um longa sobre Freddie Mercury e o Queen não trataria, além da música, de sexualidade.
Uma amiga me pediu uma opinião sobre Bohemian Rhapsody, estava pensando em levar o filho, adolescente, mas ficou em dúvida por conta das vaias e da polêmica nos jornais.
Respondi que levaria a minha avó, tranquilamente. Correndo o risco de ouvir algo como:
“É ótimo, mas que filme pudico, meu filho”.
Deixe um comentário