A SBPRP informa que as inscrições com desconto para o Encontro Preparatório para o Congresso da FEBRAPSI foram prorrogadas até dia 08 de março, sexta-feira, no site da SBPRP:
https://www.sbprp.org.br/site/eventos_show.php?id=63
Será um evento científico com convidados da Diretoria da Febrapsi e da SBPRP que debaterão esse instigante tema proposto por Freud em “O Estranho”. Abaixo você pode encontrar o texto de Lídia Neves Campanelli sobre o tema:
O XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise aborda como tema central o ensaio “O inquietante” (O estranho, tradução do espanhol), escrito por Freud em 1919. Este trabalho toma como referência um campo específico de conteúdos mentais carregados de ambiguidade que provocam estranhamento e angústia quando se entra em contato com eles. Ao investigá-los, Freud constata que o inquietante é estranhamente familiar, um retorno do recalcado que permanece submerso, guardado no inconsciente reprimido. A ideia do inquietante ou estranhamente familiar estava presente no cenário da cultura alemã desde o final do século XVIII, quando o movimento romântico surgiu em contraposição à racionalidade dos Iluministas, alcançando o domínio da filosofia, literatura e artes plásticas. Na esteira destas ideias, considera-se que a interpretação da realidade não é direta, não se limita aos confortos da razão, mas inclui a subjetividade, com seus obscuros impulsos, emoções, sentimentos e a faculdade da intuição. Estes pensamentos criaram espaço onde o misterioso, o enigmático e o aterrorizante da experiência humana puderam aflorar. A experiência estética abriu-se, então, para incluir não apenas o contato com o belo e o sublime, mas também para elementos góticos como o fantástico, o repugnante, o sombrio e o horrível.
O estranho, tal como Freud apresenta, pertence à dimensão do inusitado, do que provoca dúvida e “incerteza intelectual”, esgarçando os paradigmas cognitivos da construção de mundo do sujeito. O contato com seres espectrais, sósias, duplos, fantasmas, vampiros, criam situações de angústia e terror. Freud construiu seu pensamento sobre este tema, procurando encontrar o que torna possível distinguir o inquietante no interior do que é angustiante. Afinal, nem tudo que é estranho provoca angústia. Dirigiu suas buscas para o campo semântico da noção de estranho e estrangeiro em várias línguas, para o trabalho do psiquiatra alemão Ernst Jentsch, o Psychologie des Unheimlichen e para o conto “O homem de areia” de E.T.A. Hofffmann. A origem do angustiante no estranho, conclui, são os conteúdos mentais reprimidos, o inacreditável desconhecido que nos habita. Aponta aspectos diversos de um fato que poderiam transformar o que é apenas amedrontador em inquietante, abordando o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência dos pensamentos, a relação com a morte, a repetição não intencional, o complexo de castração, a dúvida quanto à natureza animada ou inanimada dos objetos, entre outros.
Freud tece considerações sobre o inquietante na ficção e na literatura. O escritor pode escolher o mundo que apresenta, e o inquietante da obra literária pode não ter correspondente nos fatos da realidade, mas os leitores reagem a ela como se estivessem diante de suas vivências. Sem dúvida, Freud nos aproxima de um universo fascinante e perturbador que se expandiu em desdobramentos na filosofia, literatura e nas artes em geral.
Cem anos se passaram e a Psicanálise estendeu seus pensamentos para outras direções. Que outras associações poderíamos fazer com o tema? Assim, permito-me divagar e sonhar sobre um conto que traz um dos temas que compõe o inquietante para Freud, o sósia, sob outros vértices psicanalíticos.
Volto-me para o conto “William Wilson” de Edgar Allan Poe. De modo resumido, trata-se da presença de um sósia na vida do personagem, desde a infância até a universidade. Abandonado desde menino às suas impulsivas decisões, William Wilson é colocado em um colégio interno. De atos de pequena perversidade, seu caráter vai se transformando até tornar-se alguém “repugnante, furioso, excêntrico e decadente”. O sósia representava sua consciência contrapondo-se às suas violentas atuações. O relato leva a crer que o sósia mantinha com ele uma atitude ora compassiva e gentil, às vezes irônica e crítica. Conversava sem elevar a voz, sussurrando, quase como um eco e, em alguns momentos, parecia protegê-lo afetuosamente.
As recordações do colégio interno são povoadas de espaços misteriosos e imaginados como infinitos, o que nos remete ao evanescente e onírico. William Wilson tem uma vaga sensação de ter conhecido o sósia “em algum lugar do passado”. Os sentimentos que sua presença lhe despertava eram discrepantes e indefinidos: “alguma estima, respeito, curiosidade e temor”. Reconhecia suas qualidades e talentos, seu senso moral e cuidado com o outro que tanto desacomodavam suas intenções e atos perversos. Ao sugerir mudanças de planos, o sósia o protegia de desgraças. Ainda que pudesse reconhecer as vantagens de seus conselhos, ressaltava o caráter invasivo de suas intervenções. Quando sai do colégio, acredita ter se livrado do sósia, do fantasma que o perseguia, para sempre. O reencontro acontece anos depois, repetições dele se sucedem nos mais distantes lugares. Não era mais possível fugir do sósia e de duas intromissões que pretendiam submetê-lo. A angústia e o sombrio desejo de livrar-se dele foram crescendo e tomando vulto.
Fazendo conjecturas teóricas, penso que, neste conto, o sósia pode ser pensado como aparições de um pensamento que dava origem a sentimentos insuportáveis e, assim, era tratado como um corpo estranho e perseguidor. O pensamento representado pelo sósia não podia evoluir. William Wilson mantinha-se aderido a atuações impulsivas e perversas, com turbulentas repetições, permanecendo em um estado mental de onipotência. O “duplo” trazia a possibilidade de desenvolvimento psíquico, com consideração pelo outro, pela vida mental e amor pela verdade, aspectos tratados como fantasmas que ameaçavam a ilusão de autossuficiência. Sua personalidade estava aprisionada e, ao não acolher as palavras do sósia, impedia a evolução do pensamento e sua transformação em conhecimento (K). O ódio ao ego que liga à realidade e que se mantém conectado tanto com as demandas da realidade interna e narcisista, como também com as da realidade externa e social-ista, pode resultar no seu enfraquecimento ou mesmo destruição em estados de mente muito perturbados ou psicóticos. No conto, o pensamento representado pelo duplo não conseguiu transitar, a perturbação psíquica foi esmagadora, não pode ser atravessada. Permanece, contudo, um vestígio de esperança nas aparições deste “duplo como pensamento”. Se o que assusta e provoca dor mental puder ser tolerado, o novo pode irromper, criando a partir daí, quem sabe, aberturas a inúmeras possibilidades.
Referências Bibliográficas
Eco, U. (org.). História da feiura. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Bion, W.R. Cogitações. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
Freud, S. (1919). O inquietante. In: Obras Completas, vol. 14. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Poe, E.A. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Sapienza, A. Reflexões teórico-clínicas em psicanálise. Organização de Miriam Moreira Brambilla Altimari…[et al.]. São Paulo: Blucher, 2016.

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