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Esse inquietante e estranho mundo: questões éticas
por Adriana Salvitti, Membro Filiado SBPRP
Fulano abre a boca e diz: “você não é nada para mim”. “Eu não me importo”. Num momento de lucidez, ou de loucura, nota: “isso me faz mal; ele é o mal. Que fique longe”. E sentindo-se ameaçado, ordena: “volte para o lugar de onde veio! Você não é igual a mim”. “Não me onere.” Num acesso de cólera, vocifera: “que morra!”. Diante das inúmeras situações de colapso, vulnerabilidade e desamparo que temos testemunhado ou vivido, seja na vida pública ou na intimidade do consultório, sem dúvida há um foco colocado sobre a integridade do Eu e do grupo social.
O último crime ambiental em Brumadinho (MG) nos faz pensar sobre as nossas barreiras de proteção. Quão sólida, maleável ou resistente elas podem ser diante da angústia? (Costa, 2019). Muitos são os sistemas defensivos descritos na psicanálise, sendo os mais radicais aqueles que levam à expulsão de emoções ou anulação das mesmas em nós. O que é assustador está fora ou vem de fora e lá deve permanecer.
É curioso pensar que a mudança operada por Freud em sua teoria da angústia em 1926 se deva não apenas a um rearranjo no percurso teórico, mas a uma mudança na condição mental do analista em detectar ameaças catastróficas, primitivas, que remontam ao desamparo original do bebê. Se num primeiro momento Freud enxerga a ansiedade como a expressão de um impulso represado, num segundo momento ele a reconhece como ameaça de aniquilação, e emergência de algo tenebroso (Freud, 1926).
Em 1919, um ano após a Primeira Guerra Mundial, Freud publica o ensaio “O estranho”, no qual associa a dimensão do assustador ao que, um dia, foi familiar e conhecido. Trata-se da ameaça de algo indefinível e inquietante, fatídico e inescapável, que retorna para nos atingir. Essa vulnerabilidade radical diante de um outro que está fora mas também dentro, leva a pensar em como nos posicionamos.
Invertendo a lógica do “eu primeiro” e da sobrevivência do mais forte, o filósofo sugere: “Teremos a ousadia de pensar que o outro sou eu?”. “E se eu dependesse daquele que me é radicalmente diferente, e não ele de mim? E se o outro fosse o primado da ética, e não o eu?”
Aproximando isso da psicanálise, lembro-me da associação do estranho com o estrangeiro, feita por Julia Kristeva. Levando a “estrangeiridade” ao coração da experiência do sujeito consigo e com o outro, Kristeva nos dá um caminho de reflexão:
Ao reconhecermos nossa inquietante estranheza, não a sofreremos nem a apreciaremos de fora. O estrangeiro está em mim, por isso somos todos estrangeiros. Sendo estrangeiro, não há estrangeiros. Portanto, Freud não fala sobre eles. A ética da psicanálise implica uma política: envolveria um cosmopolitismo de um novo tipo que, atravessando governos, economias e mercados, poderia funcionar para uma humanidade cuja solidariedade se funda na consciência de seu inconsciente – desejante, destrutiva, temerária, vazia, impossível. (Kristeva, 1991, p.192).
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Referências:
Costa, E. A. (2019). Tragédia da barragem de Brumadinho: a escuta analítica diante de uma inundação de lama, angústia e desamparo. In:
https://www.febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-892019/
Freud, S. O Inquietante. Sigmund Freud Obras completas, vol. 14, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Freud, S. (1926). Inibição, sintoma e angústia. Sigmund Freud Obras completas, vol. 17, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Kristeva, J. Strangers to Ourselves. New York: Columbia University Press, 1991.
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