A Chegada: História da Sua Vida [1]
por Paulo de Moraes M. Ribeiro [2]
Valeu a pena?
Sempre vale a pena, se a alma não é pequena.
Fernando Pessoa
Arrival (A Chegada) é um filme de ficção científica norte-americano de 2016 dirigido por Denis Villeneuve, um diretor de cinema e roteirista franco-canadense conhecido por dirigir vários filmes aclamados pela crítica, como Incendies (2010), Prisoners (2013), Enemy (2014), Sicario (2015), Arrival (2016) e Blade Runner 2049 (2017). Seu roteiro foi escrito por Eric Heisserer, e foi baseado no conto “Story of Your Life” (1999) de Ted Chiang, um discreto escritor americano várias vezes premiado por obras de ficção científica. O filme foi aclamado pela crítica especializada, que elogiou a atuação da protagonista, a direção de Villeneuve e a originalidade do roteiro. Teve oito indicações ao Oscar de 2017, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado.
O enredo do filme segue a estrutura do conto do Chiang, versa sobre seres extraterrestres que chegam à Terra em doze naves espaciais e pousam em diferentes pontos do planeta. As autoridades mundiais montam estratégias de contato com os alienígenas. O que querem eles? Comunicação? Invasão? Negócios? Turismo?
Em torno de cada nave os militares estabeleceram equipes para tentar o contato; a Dra. Louise Banks (Amy Adams), uma renomada linguista que já ajudara o Estado anteriormente, em conjunto com o experiente físico Ian Donnelly (Jeremy Renner), são convocados para interagirem com as criaturas, traduzir seus sinais e desvendar se os alienígenas representam uma ameaça ao mundo. Ambos são pressionados a descobrir o propósito dos extraterrestres o mais rápido possível, assim como as outras onze equipes dos países onde as naves pousaram. Porém, os interesses políticos, a corrida pela supremacia entre as nações, as diferenças culturais e o medo do desconhecido entram em cena, obstruindo o trabalho de natureza mais científica.
Paralelamente às cenas do trabalho com os alienígenas, o diretor nos apresenta flashes da vida da Dra. Louise: seu enamoramento e casamento com o Dr. Donnelly, o nascimento de sua filha Hannah, cenas da vida cotidiana de ambas, a separação do casal e a morte da filha. Estas cenas nos confundem, pois não tem uma sequência temporal lógica (crono-lógica). Não sabemos ao certo se ela está recordando o passado ou se é algo referente ao seu presente, ou mesmo se ela estaria tendo uma ‘memória do futuro’ (lembrando Bion).
A leitura do conto “História da sua vida” de Ted Chiang nos auxilia na compreensão. Algumas passagens foram discretamente alteradas pelo roteirista Eric Heisserer, de forma a realçar a emocionalidade do filme; por exemplo, no conto, a Hannah morre num acidente de alpinismo e não de câncer; a separação do casal implica em outra mulher e não na revelação da futura morte da filha, o que lhe foi emocionalmente intolerável.
Voltando ao filme: no final das contas, os heptápodes não queriam nos invadir, queriam nossa ajuda futura (daqui há 3.000 anos!) e nos trazer um presente, a sua estrutura de linguagem, que teria o poder de mudar o nosso funcionamento mental. Quem compreendesse a língua dos heptápodes fluentemente se tornaria capaz de saber seu próprio futuro, incluindo as circunstâncias de sua própria morte, bem como as de seus entes queridos.
Pretendo expandir este ponto, pois tem sido objeto de minhas reflexões e penso ser um vértice rico para a clínica do psicanalista. Deixo de lado, por enquanto, o enfoque desse filme como, essencialmente, uma estória sobre coragem[3] e passo a enfocar o que Bion chamou de “ato de Fé”.
Coragem, ou ousadia, está relacionado com o “ato de Fé”, que é um conceito cunhado por Bion (1970), que tomou emprestado da religião católica a ideia de uma adesão incondicional a alguma hipótese considerada como sendo uma verdade absoluta, que não carece de evidências. Bion retirou dessa ideia qualquer elemento religioso, preservando radicalmente as conexões semânticas com os verbos acreditar, confiar e apostar. “Ato de Fé” é uma aposta realizada no aqui agora do presente sobre um futuro que, embora incerto, temos a segurança que se fará presente se nos dispusermos ao trabalho emocional inerente.
A protagonista principal do filme, a Dra. Louise, precisou de muita coragem para se colocar na experiência emocional direta com os heptápodes, que representam o desconhecido absoluto. Quando ela resolve se despir dos paramentos protetores que faziam uma separação, um anteparo entre ela e os alienígenas, e se expos verdadeiramente, estava agindo como o psicanalista quando se despe de suas teorias, seus preconceitos, suas “memórias, desejos e necessidades de compreensão” (Bion) para viver com o analisando o que tiver para ser vivido, em busca de compreensão e expansão da mente (OàK). As imagens que foram surgindo na mente da pesquisadora – cenas com um bebê, uma criança brincando, uma jovem doente, etc. – eram inicialmente desconexas, incompreensíveis e perturbadoras, mas ao invés dela descartá-las como ‘lixo mental’, ela as coletou (“notação”) e foi aguardando pacientemente até que uma revelação (“fato selecionado”) surgiu e ela pode compreender que havia desenvolvido a capacidade de antever o seu futuro, graças ao aprendizado da língua heptápode. Assim, se expondo de perto, muito perto, pode pesquisar em si mesma as respostas para as questões que emergiam da experiência emocional.
Podemos apenas imaginar, empaticamente, a coragem que é necessária para uma pessoa ter continência à dor de ter a consciência da morte da própria filha, bem como do fim de seu casamento, e mesmo assim se lançar à essas experiências fundamentais. Casamento e nascimento de um filho são algumas das principais “cesuras” (Bion) da vida, e viver o que nos cabe nesta vida, verdadeira e intensamente, é o que podemos oferecer de melhor para nós mesmos.[4] A Dra. Louise ousou expor-se à essas emoções, às dores/lutos, mas também aos prazeres de ser esposa e mãe. Para tal, teve “Fé” na exposição ao heptapodês, acreditou que a experiência lhe traria evolução, compreensão e libertação; se lhe predominasse o medo – o medo da loucura – certamente ela se evadiria destas auto-percepções e se apegaria às ideias já conhecidas (Kà -K) para não ter que lidar com o medo do desconhecido (“O”).
A hipótese de Sapir-Whorf referida no filme é uma teoria linguística que ganhou força na segunda metade do século XX e serviu de fundamentação teórica para a Dra. Louise conseguir se orientar em seus pensamentos e sentimentos. Segundo essa teoria, a estrutura e o vocabulário de uma língua são capazes de moldar os pensamentos e as percepções de seus falantes, portanto, cognição e língua seriam inseparáveis, e o estudo de uma determinada língua poderia levar à elucidação da concepção de mundo na qual ela é falada.[5] Ted Chiang, em seu conto, levou o argumento de Sapir-Whorf às últimas consequências, apresentando a ideia de que a fluência numa língua inusitada levaria a pessoa a pensar/sentir o mundo de forma diferente.[6]
No filme, a Dra. Banks tenta decifrar a enigmática língua extraterrestre e descobre que sua forma falada, que para os humanos é uma série de ruídos e grunhidos, é independente de sua forma escrita, que consiste em símbolos circulares sem começo nem fim. Ela percebe que não acompanharíamos a forma oral dos extraterrestres (até porque ela parecia ser incompatível com nossos órgãos fonéticos) e passa a pesquisar sua escrita.
A escrita deles é circular; para se ler o que o símbolo transmite, não faz diferença começar de um lado ou de outro, de cima ou de baixo, de frente ou de traz; em qualquer lugar que se começar a ler, a compreensão ocorre.[7] Sendo circular, o heptapodês nos remete à não-linearidade do tempo e do espaço; difere da nossa linguagem, que precisa de um espaço (por ex., uma linha numa folha) e ocorre ao longo de um tempo (da margem esquerda para a margem direita, da linha de cima para alinha debaixo, etc.). Nossa escrita, e também nossa fala, implicam numa interpretação cronológica causal dos eventos: um momento nasce do precedente, uma palavra leva à próxima, elas se relacionam sob a dinâmica de causas e efeitos, criando uma reação em cadeia que avança do passado para o futuro.
A teoria apresentada no filme implica que nossa linguagem nos conduz a pensar de forma predominantemente linear e causal. Uma explicação causal se baseia na ideia de linearidade mecanicista, que vê todo efeito como já estando completamente presente na causa que o precedeu, que por sua vez é efeito de outra causa anterior e assim por diante. A determinação é, portanto, colocada no passado, numa única linha ou cadeia causal de eventos. Essa forma causal de pensar seria responsável pela nossa percepção do tempo na forma de uma linha reta: PassadoàPresenteàFuturo, o que tem implicações empobrecedoras na forma como apreendemos a Realidade. Por exemplo, quando os humanos pensam sobre as leis da física, costumam trabalhar com elas em sua costumeira formulação causal. Os atributos físicos que os humanos consideram naturalmente intuitivos, como energia cinética ou aceleração, são propriedades de um objeto em determinado momento do tempo e levavam a uma interpretação cronológica causal dos eventos. Do ponto de vista da Física, isso funciona bem ao redor do nosso planeta, com nossa força da gravidade, mas para a compreensão de fenômenos fora da estratosfera ou para a compreensão de fatos subatômicos (neutrinos, por ex.), nos quais a gravidade é muito fraca, a física newtoniana não é suficiente; para tais estudos, os cientistas precisaram desenvolver a física quântica, que não obedece a relações causais, mas sim relações incertas e complexas.
Curiosamente, os heptápodes podiam entender bem nossa física quântica e nossa matemática complexa, mas a lógica cartesiana não. O intuitivo natural para eles era diferente do nosso, por isso sua relação com o tempo era tão complexa. Sabiam o futuro, mas não porque ele estivesse adiante na linha do tempo, mas sim por ser parte de um contínuo espaço-tempo que os levava a uma interpretação teleológica dos acontecimentos: podiam ver os eventos ao longo de um período de tempo e conhecer os efeitos antes do início das causas. Assim, reconheciam uma exigência que deveria ser satisfeita: minimizar ou maximizar os fatos da vida, e não resolver!
A Dra. Louise, no final do filme, questiona ao Ian: “Se você soubesse sua vida inteira, você a viveria do mesmo jeito ou a mudaria?”. Fatos não podem ser mudados, mas minimizar ou maximizar uma experiência emocional pode ser de grande valor, por exemplo, se soubéssemos de antemão que uma experiência nos seria de dor, poderíamos minimizá-la, se ela for de crescimento ou de prazer, maximizá-la! Jamais negá-la, sempre aproveitá-la. [8]
À luz dessas ideias, podemos conjeturar: e se pudéssemos romper com a causalidade da linha do tempo? O que aconteceria com nossa mente?
No conto, Louise, na voz da primeira pessoa, nos explica: “À medida que fiquei mais fluente, os desenhos semagráficos apareciam [na minha mente] completamente formados, articulando ideias complexas, todas ao mesmo tempo. No entanto, meus processos de pensamento não estavam se acelerando por causa disso, em vez de correr para a frente, minha mente se equilibrava na simetria essencial implícita aos semagramas. Os semagramas pareciam ser algo mais que linguagem; eram quase como mandalas. Eu me vi em um estado meditativo, contemplando a forma como premissas e conclusões eram intercambiáveis. Não havia direção inerente no modo como as proposições eram conectadas, nenhum “fluxo de pensamento” seguindo por uma rota particular; todos os componentes em um ato de raciocínio eram igualmente poderosos, todos com precedência idêntica.” (pág. 171). [9]
No conto, Louise questiona se a existência do livre-arbítrio levaria a incapacidade de ver o futuro. Sabemos da existência do livre-arbítrio, pois temos experiência direta com ele. A vontade, que gera nossas escolhas, é parte intrínseca da nossa consciência. O que aconteceria se nos libertássemos de nossa consciência? Poderíamos ver o futuro? O passado? Ou o que?
A mente humana é uma ferramenta de enorme potência, de grande energia; como indivíduos e como Humanidade, ainda usamos muito pouco das nossas capacidades mentais, estamos apenas “engatinhando” (como referiu Bion). Imaginemos como será quando estivermos “correndo”… Seríamos como os heptápodes?
Guardadas algumas singularidades humanas, esse filme/conto pode ser sonhado como uma antevisão do futuro do funcionamento mental da humanidade. Os artistas tem a capacidade de antever elementos do futuro ainda invisíveis aos olhos comuns. Isso aconteceu, por exemplo, com o projeto do módulo lunar da NASA (inspirado nas revista em quadrinhos da década de 1930), com a previsão dos pintores modernistas antes das duas Grandes Guerras Mundiais (que denunciavam a decadência dos valores da sociedade de então), com elementos do nosso presente antevistos por George Orwell em “1984” (como a internet, big-brothers, autoritarismos, etc.) ou em “Admirável Mundo Novo” do Aldous Huxley (uso de substâncias químicas em massa, divisão da sociedade em castas, reprodução artificial, etc.), entre outros.
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A nossa Consciência opera, funciona, na terceira e quarta dimensão da Física; respectivamente, a do espaço tridimensional e a do tempo cronológico; através de correlações têmporo-espaciais nos organizamos para pensar nossos pensamentos, nossos sentimentos, tomar nossas decisões e efetuar nossas ações. Podemos conjeturar que uma futura evolução como seres pensantes pode caminhar na direção de desenvolvermos uma capacidade para abstração dos elementos limitadores da consciência e, assim, abrirmos caminho para conjeturas imaginativas que permitam apreensões da realidade nas demais dimensões existentes.[10]
Deste modo, ao nos libertarmos da consciência que nos diz que estamos no dia tal, ano tal, hora tal + país tal, cidade tal, e entre quatro paredes, teto e chão, poderíamos vislumbrar dimensões paralelas a fim de iluminarmos alguns elementos da nossa atual dimensão. Recentemente, numa reunião científica de uma colega (Wierman, 2018), esta referiu que precisou refrear seu analisando, um menino bastante agitado, que estava derramando água e tinta violentamente por toda a sala. A analista começou por lhe dizer que gostaria que eles estivessem num lugar onde ele pudesse espalhar livremente toda aquela água; rapidamente, o menino completou sua frase dizendo que este lugar era um “quintal”. Neste momento, numa radical mudança de estado mental, ele se tranquilizou. Sugeri que, mais do que a função de continência, talvez a mudança observada fosse devido ao fato de que eles, naquele exato momento, teriam se tornado, de fato, o referido ‘quintal’. Isso se relaciona ao conceito do “tornar-se O” de Bion (1970), mas nesta conjetura imaginativa eu não me referia a um ‘quintal’ que representasse uma das dimensões da mente do analisando – ou um objeto interno de sua fantasia – mas um ‘quintal’ real mesmo, um “O” daquela dupla, naquela experiência emocional compartilhada. Nesta hipótese, além do espaço (setting/quintal), o tempo também seria sincrônico, o presente-passado-futuro seriam simultâneos, e ambos se encontrariam num ‘quintal’ em uma dimensão paralela da realidade tridimensional. O vislumbre dessa dimensão pode iluminar pontos obscuros e, eventualmente, sanar obstruções ou impasses.
Na clínica psicanalítica, por exemplo, vivemos impasses que podem tentar ser sonhados de forma ‘extraterrestre’, em heptapodês. Impasses, ou “pontos cegos” do analista seriam áreas nas quais o psicanalista, embora intensamente analisando, não encontra elementos α e função α suficientes para “sonhar” (Bion, 1962, 1970) a experiência emocional em curso, permitindo actings variados ocorrerem. Podemos imaginar esses impasses como sendo ‘buracos negos’, semelhantes aos que existem no espaço sideral.
Desenhos artísticos de buracos negros (fonte: NASA)
De acordo com a Teoria da Relatividade Geral, inicialmente concebida por Einstein, um buraco negro é uma região do espaço da qual nada, nem mesmo partículas que se movam na velocidade da luz, podem escapar. Ele é, portanto, do ponto de vista do astrônomo, negro ou, do ponto de vista do analista, cego, no sentido daquilo que não pode ser observado.
Os buracos negros resultam de uma deformação da malha do espaço-tempo causada pelo colapso gravitacional de uma estrela que implode, gerando uma matéria astronomicamente maciça e, ao mesmo tempo, infinitamente compacta que se contrai tanto que desaparece, dando lugar ao que a Física chama de “singularidade”, que seria o cerne de um buraco negro, um ponto onde o tempo e o espaço deixariam de existir. Então, como seria possível “ver” esse lugar?
Talvez, quem sabe, libertando-nos das noções de tempo e espaço…
Do ponto de vista da realidade psíquica, o ‘buraco negro’ é unidimensional (um ponto), não tem espaço nem tempo, não tem representação possível, ou historicidade, ou sentido, mas existe, é real e se manifesta concretamente na relação analítica.
Em Física, o adjetivo negro em buraco negro se deve ao fato de que se pensava que este não refletia nenhuma parte da luz que porventura o atingisse, atuando como se fosse um corpo negro perfeito, absolutamente invisível; porém, a teoria da radiação Hawking[11] que prevê que os buracos negros não são realmente negros, mas emitem um tipo de radiação proveniente de flutuações quânticas.
Em psicanálise, como poderiam ser detectadas essas ‘radiações’ emitidas pelos pontos sem história, sem representação e sem lugar, os buracos negros da dupla analítica?
Apesar de serem praticamente invisíveis, os astrônomos podem detectar um buraco negro pelo efeito de sua massa sobre o movimento das estrelas circunvizinhas; sua densidade gigantesca influencia o movimento delas e, eventualmente, se estiverem muito próximas dele, podem inclusive ser tragadas pelo buraco negro.

De forma análoga, os buracos negros poderiam ser detectados na clínica psicanalítica através das distorções nas relações estabelecidas entre os dois ‘corpos estelares’ presentes na sala de análise (analista e analisando). Para a percepção destas ‘distorções’, equipamentos sofisticados devem ser empregados: a ‘antena mental’ do analista, sua capacidade de observação, deve estar focada na mente multidimensional de ambos da parceria e na mente multidimensional da própria parceria (uma expansão daquilo que Ogden chamou de “terceiro analítico intersubjetivo” [12]).
A mente do analista é como um sensor ultrassensível, ou um micro/telescópio, capaz de observar eventos simultâneos que ocorrem em diferentes escalas:
- ‘Regulares’/‘terráqueas’, as chamadas “transferências”, tão bem descritas por Freud, ou
- ‘Irregulares’/‘estratosféricas’ como ocorrem nas camadas de psicose, tão bem descritas por Melanie Klein com o conceito de relações de “objetos parciais” e “fantasias inconscientes”, e
- ‘Infra ou ultra sensoriais’/‘quânticas’, como ocorrem na apreensão da realidade psíquica através da “intuição”, como descrita por Bion (especialmente na parte final de sua obra).
Stephen Hawking (1942-2018), pouco antes de sua morte, declarou que não pensava mais que o que era sugado para um buraco negro fosse completamente destruído, sugeriu que o buraco negro poderia ser um caminho para um outro universo. Numa conjetura imaginativa do que foi nomeada de multiverso[13], os buracos negros, seriam portais, “cesuras” (Bion, 1977), para universos paralelos ao nosso.
Representações estéticas de multiverso
Assim, diante de um possível ‘buraco negro’, poderíamos tentar observar a dupla a partir de um vértice radicalmente diferente, livre das relações de causalidade e das limitações da tri e tetra-dimensionalidade (espaço físico e tempo cronológico). No modelo do multiverso, isso seria como entrar em ‘dobra espacial’[14] e sermos alçados para um espaço-tempo paralelo, que seria muito mais intuído do que pensado, seria inédito, inusitado, e a partir dele poderíamos observar o buraco negro presente e tentar compreende-lo.
Numa recente comunicação, uma colega (Sarti, 2019) lembrou-nos que tolerar a dolorosa “condição de sermos sós e dependentes e, ao mesmo tempo estarmos no UNO com o paciente” é necessária para desenvolvermos esse estado de “isolamento” que nos permite essas observações inusitadas. Contou, a respeito, que atendendo uma paciente que se sentava, e ouvindo algo que dizia sobre sua relação com o filho, escorreu-lhe uma lágrima. Em suas palavras, algo lhe “escapou e era algo que eu não estava pensando, nem sentindo. (Radiações do meu buraco negro?). Ela me olhou fixamente e não disse nada. A sessão seguiu. Recorri a Bion, a Vinicius, a mim mesma: “Ufa, estou aliviada, hoje duas mulheres se encontraram aqui”. Algo se abriu- ampliou-entre nós!”
Utilizando esta conjetura imaginativa como ferramenta de observação, podemos conceber a experiência emocional compartilhada como vivenciada em dimensões sincrônicas e concomitantes. O analista – em estado receptivo, opacificando suas “memórias, desejos e necessidades de compreensão imediata’ (Bion, 1970; Braga, 2012, 2016; Sapienza, 2004; Ribeiro, 2016, 2019) – além de captar com sua ‘antena mental’ as dimensões mentais (e protomentais) nas quais o analisando se encontra, poderia, de fato, experimentar junto ao analisando outras dimensões para além da sala de análise e dos papéis que ambos estão exercendo. Neste modelo, em um universo (o nosso atual) ambos então no exercício da psicanálise, mas no universo paralelo, poderiam estar vivendo uma experiência emocional de outra natureza. A ‘dobra espacial’ seria o movimento mental que nos permitiria vislumbrar esses paralelismos, com vistas a aprender com a experiência.
Naturalmente, essas são apenas conjeturas imaginativas, mas, se empregadas analiticamente com coragem e Fé, podem nos brindar com inusitadas apreensões da realidade psíquica, abrindo novos caminhos para a expansão mental.
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ADENDO – “Story of Your Life” de Ted Chiang (1999):
Sobre o Livro das Eras
Eu gostava de imaginar a objeção como uma formulação de Borges: Considere uma pessoa sentada diante do Livro das Eras, uma cronologia que registra todos os eventos, do passado e do futuro. Embora o texto tenha sido fotorreduzido da edição em tamanho natural, o volume é enorme. Com uma lente de aumento na mão, ela folheia as páginas finíssimas até localizar a história da sua vida. Folheando o Livro das Eras, ela encontra a passagem que a descreve folheando o livro; e ela passa para a coluna seguinte, em que está detalhada o que ela vai fazer mais tarde naquele dia: agindo a partir da informação que leu no livro, ela vai apostar cem dólares no cavalo de corrida Devil May Care e ganhar vinte vezes essa quantia.
A ideia de fazer isso tinha passado por sua cabeça, mas, só para ser do contra, ela decide evitar completamente apostar em cavalos.
Ai está o problema. O Livro das Eras não pode estar errado, esta situação tem base na premissa de que uma pessoa recebe o conhecimento do futuro verdadeiro, não de um futuro possível. Se fosse um mito grego, as circunstâncias conspirariam para fazê-la cumprir seu destino apesar de todos os seus esforços, mas profecias em mitos são notoriamente vagas; o livro das Eras é bem especifico, e não há como a pessoa ser forçada a apostar em um cavalo de corrida da forma especificada. O resultado é uma contradição: o Livro das Eras deve estar certo, por definição; ainda assim, não importa o que o Livro diga que ela vá fazer: ela pode escolher outra coisa. Como esses dois fatos podem se reconciliar?
Não podem, era a resposta mais comum. Uma obra como o Livro das Eras é uma impossibilidade lógica, pela exata razão de que sua existência resultaria na contradição acima. Ou, para ser generoso, alguns podem dizer que o Livro das Eras poderá existir, desde que não fosse acessível aos leitores: um volume é abrigado em uma coleção especial, e ninguém tem privilegio de vê-lo. (pág. 175).
[1] Texto da apresentação no C&P da SBPRP dia 29 de Março de 2019, no Anfiteatro da U.E. da USP-RP, em parceria com a Dra. Marisa Gianechini G. de Souza (UNESP, EVOHÉ).
[2] Membro Efetivo da SBPSP e Membro Efetivo com Funções Didáticas da SBPRP.
[3] A palavra coragem vem do latim coraticum e significa “agir com o coração”. Assim, corajoso é aquele que age de acordo com o coração, conforme o que sente verdadeiramente. Acreditamos que as emoções são a base para os pensamentos e as ações individuais, cada sentimento determina o comportamento da pessoa, dependendo de como ela interpreta/sonha/pensa essa emoção. O medo – primo-irmão da coragem – por exemplo, pode salvar uma pessoa de situações perigosas, mas em outras circunstâncias também pode paralisar a pessoa e fazer com que ela perca oportunidades valiosas em sua vida.
Situações desafiadoras fazem parte da vida de todas as pessoas, diariamente passamos por situações que nos questionam sobre nossas capacidades de enfrentamento. A tendência imediata em todos nós é a evasão das situações de perigo; agimos de acordo com o Princípio do Prazer (Freud) e, perigo, gera medo, e medo é desprazer/dor. Para agir com coragem, é preciso superar nossos pensamentos ‘negativistas’ e buscar nossos pensamentos realistas para dosar o medo objetivamente; assim, avaliamos as situações com clareza e a coragem pode emergir com vigor e autoconfiança (amor próprio).
Não é necessário bloquear o medo para agir de forma corajosa, é preciso aprender a dar-lhe espaço mental e modulá-lo de maneira adequada. É muito comum acharmos que precisamos ‘vencer’ o medo, mas não, não se ‘vence’ o medo, assim como não se ‘vence’ inveja ou voracidade, precisamos é abrir espaço em nossa mente e sonhá-lo/pensá-lo; assim, criamos também espaço para a coragem. Medo e Coragem são uma “conjunção constante”, sempre aparecem em par; não dá para ter medo sem ter a coragem por perto, e vice-versa. Coragem sem medo é mera estupidez.
[4] Valeu a pena? Sempre vale a pena, se a alma não é pequena. F. Pessoa
[5] Em Psicanálise, isso é válido para a compreensão das dimensões da parte psicótica da mente (PPP), pois a ‘língua’ do psicótico é característica, e todos nós temos PPPs.
[6] Os psicanalistas conhecem bem isso, pois as (raras) pessoas que se envolvem profundamente em suas psicanálises pessoais, mudam radicalmente sua forma de enxergar a vida.
[7] Em nossa cultura, o que se aproxima desta linguagem seriam os semagramas. A palavra semagrama vem do grego, onde sema significa sinal e grama significa escrito ou desenhado. Em outras palavras, semagramas são signos ou símbolos usados para informação. Um exemplo de semagrama visual é o uso das posições dos ponteiros de um relógio para codificar a informação.
[8] O tempo é relativo, todos nós conhecemos a experiência de uma sessão de análise que, embora concretamente dure 50 min, pode parecer ter durado apenas 15… ou pode ter ‘valido’ por um ano… ou uma vida.
[9] A escolha do nome de sua filha, a quem dedicou seu livro sobre a língua heptápode, revela a concepção de mundo e de tempo adquirida por Louise: “Hannah” é um palíndromo e pode ser lido tanto de trás para frente como de frente para trás. Louise optou pela experiência de conhecer seu futuro e isso parece que lhe evocou “um sentido de urgência, um sentido de obrigação de agir do modo que sabia que agiria”. (Pág. 176)
[10] Teoria das Cordas: https://www.youtube.com/watch?v=XFGAs-woHR0 e Dimensões: www.youtube.com/watch?v=3Hi1DhxSh34
[11] https://pt.wikipedia.org/wiki/Radiação_Hawking
[12] Esquematicamente, Ogden (1986, 1994) chamou de “terceiro analítico intersubjetivo” a intersecção formada pelos conjuntos das mentes do analista e do analisando, sugerindo ser nela que toda a análise transcorra. Proponho ser uma expansão deste conceito observarmos essa entidade como um ser vivo singular, também com uma mente própria e multidimensional.
[13] Multiverso é um termo usado para descrever o conjunto hipotético de universos possíveis, incluindo o universo em que vivemos. Juntos, esses universos compreenderiam tudo o que existe: a totalidade do espaço, do tempo, da matéria, da energia e das leis e constantes físicas que os descrevem. É geralmente usado em enredos de ficção científica, mas também é uma extrapolação possível de algumas teorias científicas para descrever um grupo de universos que estão relacionados, os denominados universos paralelos.
[14] Dobra Espacial (Warp Drive) é uma conjetura científica ficcional, oriunda da literatura de ficção científica, mais especificamente da série de livros, cinema e televisão Star Trek. Trata-se, segundo os criadores da expressão, de um motor que dobraria o espaço, aproximando dois pontos quaisquer distantes anos-luz entre si, de modo a reduzir a poucas horas ou dias uma viagem no espaço que, de outra forma seria impossível. A teoria de viagem através de dobra espacial baseia-se na Teoria da Relatividade de Albert Einstein, a qual afirma que as grandes massas de gravidade aglomeradas criariam fendas no espaço-tempo, que concentrariam não só massa e energia, mas o próprio tempo junto. Essa teoria também sugere um universo multidimensional, com pelo menos 3 dimensões de espaço e 1 de tempo. Baseando-se nisso, a Teoria da Dobra Espacial sugere que aplicação de certa força poderia criar uma “ponte” entre duas partes dessa fenda por uma “quarta dimensão” e, assim, “dobraria” o espaço. O modelo seria o seguinte: Supondo-se dois pontos nas extremidades de uma folha de papel sulfite: para uma formiga, percorrer a diagonal seria o caminho mais curto de se deslocar de um ponto ao outro, mas se essa folha for dobrada, e esses pontos colocados próximos um do outro, a formiga poderia percorrê-los num breve salto, movimentando-se apenas alguns milímetros.
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