Como vocês definiriam as pessoas que fizeram grandes feitos e mudaram o percurso da humanidade? Brilhantes, incríveis… estranhas? Pois é, foi exatamente assim que Silvana Vassimon, presidente da SBPRP, descreveu Freud na abertura do Encontro Preparatório para o XXVII Congresso Brasileiro da Febrapsi: “Freud, que homem estranho!”.
De forma descontraída, mas abordando assuntos de grande importância, Silvana abriu oficialmente o Encontro, realizado nos dias 05 e 06 de abril em Ribeirão Preto. Em seguida, tivemos a participação de palestrantes da Febrapsi e da SBPRP, além de um público expressivo de profissionais, estudantes e interessados em Psicanálise.
Abaixo, você encontra o texto completo de Silvana. Não deixe de ler!
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ENCONTRO PREPARATÓRIO PARA O XXVII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE DA FEBRAPSI
A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto tem construído uma história de produção científica séria, de interlocução com a comunidade e o meio universitário, além de estar atenta, constantemente, ao aprimoramento da formação de novos psicanalistas, parte de nossa Missão na busca de excelência no desempenho de nossa profissão.
Junto a Febrapsi, temos encontrado o campo de congraçamento com outras Sociedades brasileiras, em exercício de troca de conhecimento e experiências, além do apoio inquestionável a nossos empreendimentos científicos e culturais.
De forma que, se há um momento em que podemos reunir forças e dividir ganhos, é este o momento: receber o Conselho Diretor da Febrapsi nesta preparação para um Congresso que se firma como um dos grandes momentos da Psicanálise brasileira é, no mínimo, motivo de orgulho e respeito de todos nós.
O ESTRANHO – (IN)CONFIDÊNCIAS
Este é o tema do próximo Congresso Brasileiro da Febrapsi, a acontecer em Belo Horizonte, de 19 a 22 de junho próximo.
O tema escolhido reúne a homenagem aos 100 anos de um dos mais importantes textos de Freud, “O Estranho” (1919), em articulação com as terras mineiras, suas montanhas, vales e seus Inconfidentes.
“O Estranho” introduz, na obra freudiana, inquietantes questões sobre o psiquismo, os “mistérios”, o inexplicável e, por vezes, o sobrenatural que nos impacta e assombra. Obra que prepara terreno para fundamentos da teoria psicanalítica, como o conceito de Inconsciente e Superego, além de retomar suas ideias germinais de Repressão, Compulsão à repetição e o Complexo de castração.
Com a abordagem da Estética, pelo vértice psicanalítico, como qualidades do sentir, este texto nos remete a situações inexplicáveis de vida: evoca os mistérios, o sobrenatural, criando uma sobreposição de realidade e fantasia que nos estimula e instiga.
Quanto aos In-confidentes, é bem possível que tenhamos em Freud o primeiro inconfidente na abordagem da mente: revolucionário e contestador, abre com ousadia a exploração científica da vida mental, influenciando, inquestionavelmente, o destino do ser humano. Como ele mesmo afirmou, ironicamente, seu destino era “perturbar o sono da humanidade”.

Freud, que homem estranho! Judeu, em uma região e tempo em que isto era visto com ressalvas. Vai estudar medicina! Conta-se que usou cocaína. Que analisou a própria filha. Interessou-se pela neurologia, pelas coisas obscuras e sombrias da mente, seus mecanismos e associações. Segue para a França para conhecer um pouco de um trabalho estranho que alguns médicos pesquisadores faziam com pacientes histéricas!
De volta a Viena, inicia pesquisas com pacientes cujas patologias escapavam do que a medicina tradicional conseguia alcançar. Hipnose, catarse, sugestão, talking cure!!!! Tudo que, certamente, no século XIX, poderia, e foi, considerado muito estranho!
Ousou falar em sexualidade infantil, em homossexualidade, em repressão de impulsos insuportáveis para a vida consciente. Ousou escrever suas ideias e, confiante, difundiu-as entre alguns poucos (que também deviam ser estranhos…).
Não bastasse essas esquisitices todas, ainda desalojou os Sonhos do seu lugar demoníaco ou adivinhatório, introduzindo-o no cenário científico. Já estava causando muito barulho… um revolucionário!!!
Introduz ideias que assombram: Consciente, Pré-consciente, Inconsciente. Do que fala esse homem??? Um mundo que existe fora do controle do homem? Este ser humano tão ciente de si e de seus conhecimentos?? Um perturbador da ordem social, da moral e dos bons costumes, com certeza!
Atacado, abalado, recuperado, vacilante, corajoso, segue em frente. Já sabia que havia deflagrado uma revolução sem volta. E, vejam só, não satisfeito com o que já estava proposto, decide que há um princípio, pleno, governante, estruturante, que organiza e desorganiza a vida mental: vem com a ideia de Id, Ego e Superego! Cada ideia estranha tem esse homem!
No legado científico de Freud vamos encontrar não só uma pessoa genial, dominada pela confiança em suas observações e descobertas, em sua intuição e em sua práxis.
Encontramos um homem que, Inconfidente, deflagra uma transformação aterrorizante e fascinante na busca de conhecimento do mundo mental. De sua cultura, de sua curiosidade, de suas observações precisas, veio a confiança para empreender uma guerra, enfrentando os preceitos morais, dogmas religiosos e regras sociais de sua época.
Estranho homem em seu século XIX, introduz dúvidas onde certezas e crenças tranquilizavam as pessoas de suas angústias, conciliavam-nas com a indomável natureza, aplacavam seu total desamparo no mundo. “Quem está aí”? pergunta Bernardo, em Hamlet, de Shakespeare. Esse homem, Sigmund, estranho criador de polêmicas, nos obriga, de repente, a perguntar: Quem está aí? Que Estranho é esse que funda e compõe o Ser em suas inquietações, desconhecimentos e terrores? Quem é este que nos habita?
Para ser Estranho, é preciso Coragem. O Inconfidente, aquele que questiona e rompe com a ordem científica, política ou social, é o que carrega a Coragem de ousar o novo, de desbravar os recônditos da alma, aquele que, como Freud, lá atrás, submete-se a ataques e desprezos, posto que carrega a confiança na busca da Verdade.
Freud vai observar, para além de fatos e situações estranhas corriqueiras, banalizadas no dia-a-dia, fenômenos de dupla significação, captando uma ambiguidade de “sou-e-não-sou”, “sei-e-não-sei”, indicando a presença de um outro, um Duplo, que desconheço, mas que age em mim. Abre assim uma fenda que o leva a percorrer um caminho retroativo, rumo às originárias experiências psíquicas, onde, amparado na teoria edípica, propõe a compreensão de situações de duplicidade: conhecido-desconhecido se sobrepõem, em uma cena que mescla realidade e fantasia, o visível e o duvidoso, o familiar e o novo. Com a abordagem do Estranho Freud vai sublinhar a presença de resquícios de estágios primitivos de mente, onde predominam o animismo, a onipotência do pensamento e o narcisismo.
Freud irá explorar com maestria a sutileza do Unheimliche – aquela palavra cujo significado reside nas entrelinhas, lá onde se acomoda a estética e a intuição. O Estranho deveria permanecer oculto, mas vem à tona! Por esse caminho, Freud conecta coerentemente os fenômenos do Sinistro com sua teoria plena, acoplando aquilo que é tão assustador e novo, mas também de certa forma familiar, às bases fundantes de sua teoria: o Complexo de Castração e a Repressão.
À partir daí, abre, em seu texto, o espaço no qual se insinuarão os conceitos de Inconsciente e Superego, sem deixar de apontar o Retorno do Reprimido e a Compulsão à Repetição; além de, sem dúvida, abrir espaço também para as explorações futuras dos estados de oscilações psicose-neurose.
Com esse texto, aprendemos que o Estranho, habitante do sub-mundo, aquele sequestrado à consciência, é um revolucionário: In-confidente, condenado a viver na marginalidade, posto que questiona e desordena a ordem psíquica estabelecida, permitida e necessária para a manutenção dos padrões de defesa iniciais do psiquismo, vai introduzir-se à força na vida comum através dos sintomas, da patologias, das atuações, enfim, de tudo aquilo que poderá lhe dar voz e nos obrigar a saber de sua existência. Exatamente como um In-confidente que, sem escuta, sem espaço de expressão, sem respeito por suas necessidades e divergências, vai forçar sua presença através de ações e rebeliões.
Freud então, esse estranho homem, vai nos ajudar a perceber que o Estranho nos habita. Entranhado nas profundezas do indizível inconsciente, se anuncia em nossos assombros, em nossas falhas, em nossas doenças. Ele aí reside e faz parte de nós. O desconhecido de si mesmo, que um dia nos foi familiar, retorna de forma assustadora, como algo da ordem do que não é compreendido… mas não só… o Estranho vem com um certo fascínio que perturba. Como diz o próprio Freud em seu texto, citando um conhecido gracejo: “O amor é a saudade de casa”: casa-mãe, casa-útero, casa-abrigo primordial.
Para o psicanalista cabe a tarefa de aproximar o paciente deste seu desconhecido, mediar sua aproximação e dosá-la, de forma a tornar menos traumática a convivência de aspectos tão diversos e contraditórios. De forma a desenvolver a capacidade de enfrentamento de verdades ocultas, através do sentir e pensar, à exemplo do primeiro inconfidente, este desbravador de territórios escondidos, bandeirante e guerrilheiro que nos inspira e alimenta até hoje: Sigmund Freud.
Silvana Vassimon
05/06 abril 2019
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