por Adriana Salvitti, membro filiado da SBPRP, e Maria Luiza Crisóstomo Piantino, membro associado da SBPRP
Em maio será realizada a V Bienal de Psicanálise e Cultura da SBPRP. Com a intenção de conhecermos um pouco sobre os bastidores da organização, a importância do tema e o que podemos esperar do evento, conversamos com Josimara M. F. de Souza (coordenadora geral), Guiomar Papa de Morais (coordenadora da comissão científica) e Denise Antônio (coordenadora da comissão cultural).
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BLOG: A Bienal desse ano traz como tema a questão da fronteira e seu significado tanto literal quanto simbólico, a partir de dois estímulos: a questão das fronteiras, da intensa migração humana que tem ocorrido na atualidade, que nos leva a refletir sobre como lidamos com a alteridade e com os encontros/desencontros com o outro, e o centenário do livro de Freud, “Além do Princípio do Prazer”. Este livro apresentou o conceito de pulsão de morte, que até hoje divide a opinião de psicanalistas.
Contem-nos um pouco sobre o processo de escolha do tema, dos palestrantes, e o que motivou a abordagem sobre a migração.
JOSIMARA: Quando a Comissão Permanente começou a se reunir, em 2017, o grupo começou a pensar, dentre outras questões, qual seria o tema da V Bienal, em um processo de brainstorming. Quando eu fui convidada a integrar o grupo, como coordenadora geral da V Bienal, passei a fazer parte dessas reuniões, nas quais discutimos intensamente quais temas emergiam no momento. Foi um processo no qual todos nos envolvemos muito, trazendo textos, vídeos, filmes e exposições para reflexão.
Algumas obras foram bastante inspiradoras: textos da jornalista e escritora Eliane Brum, em especial um que aborda a questão da fronteira entre Brasil e Venezuela (“A violência em Roraima é contra a imagem no espelho” – El País de 27 de agosto de 2018), onde ela diz que “Fronteira é um não lugar de humanidades ferozes”. A exposição de Ai Wei-Wei no Ibirapuera, ao qual vários de nós pudemos ir, também trazia com muita contundência a questão dos refugiados e questões que o artista havia observado na cultura brasileira, ligadas à escravidão e à desigualdade social.
(Fotos de Adriana Salvitti: exposição de Ai Wei-Wei no Ibirapuera)
O interessante foi que, simultaneamente, vários eventos, na área psicanalítica e em outras áreas, surgiram com o tema das fronteiras, o que evidencia o quanto estamos ávidos por falar e pensar a esse respeito. Como o ser humano se comporta nas fronteiras geográficas, sociais, de raça, nas suas fronteiras internas? A fronteira pode ser algo necessário na organização civilizatória, mas desde que salvaguardadas as condições de trânsito e trocas entre as diferenças. Mas algumas fronteiras podem ser questionadas, as de raça, por exemplo: raça existe mesmo ou é uma construção social criada para justificar a dominação de uns povos sobre os outros? E falando nisso, como nós brasileiros, tidos por muito tempo como um povo gentil e adepto da miscigenação, lidamos com nosso passado escravocrata? As questões são muitas e nosso desafio é não perder o foco psicanalítico, mas avançar fronteiras do conhecimento e das artes para melhor compreendermos nossas raízes profundas e nossas dificuldades de nos pensarmos como comunidade, em que todos somos responsáveis por todos.
Paralelamente a esse tema, surgiu também com muita força a importância de lembrarmos do centenário de “Além do princípio do prazer”, obra fundamental de Freud, que propõe a existência da pulsão de morte. Nossas conversas nos levaram a um ponto importante: de que a teoria das pulsões poderia nos ajudar a refletir a respeito das fronteiras e tudo que envolve este tema.
Bom, após muitas conversas, a ideia desses dois eixos para nosso tema foi levada a uma reunião aberta da SBPRP, para a qual todos os membros foram convidados. E nossa proposta foi muito bem recebida por todos. Definido o tema, a comissão científica começou a se organizar e a trabalhar com muito entusiasmo na escolha de convidados e na definição do programa.
GUIOMAR: Em 2017 foi criada uma Comissão Permanente das Bienais, considerando que os Eventos Bienais de Psicanálise e Cultura vêm sendo organizados com sucesso e têm se tornado uma tradição na nossa Sociedade. O tema começou a ser pensado nesta comissão e em 2018 foi formada a comissão da V Bienal.
Em 2018 estavam em efervescência os fenômenos migratórios, com o recrudescimento de ideias e ações de abertura e fechamento de fronteiras, expondo de forma irrefutável aspectos subjetivos e intersubjetivos das relações humanas. O programa científico da V Bienal está sendo pensado no sentido de abordar e refletir sobre estes aspectos que compõem as relações humanas no que tange as fronteiras eu⬄outro e suas repercussões no contexto social, abordando-os através de temas que vem atravessando sua história.
A conferência de abertura “Cem anos do ‘Além do Princípio do Prazer’”, nos colocará em contato com a proposta de Freud sobre a pulsão de morte, “como advento da dualidade Eros versus Thanatos: jogo fecundo entre desconstrução, construção e reconstrução” (Paim, 2019). Na intersecção individual e social, tendo a psicanálise como fio condutor, seguirão os temas, que podem ser vistos com mais detalhes no programa, sobre a maldade, o estrangeiro, o racismo, as catástrofes ambientais, sociais e psíquicas, trazendo-nos a reflexão dos refugiados em nosso país e os povos indígenas; um debate com psicanalistas nas (im)permeáveis fronteiras sociais, culturais e políticas; e a mesa de encerramento sobre potência da arte.
> Veja o Programa no site oficial do evento
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BLOG: Como se dá a interface da psicanálise com fenômenos sociais? Freud nos ajuda a compreender nosso tempo ainda hoje?
JOSIMARA: Em 1914 Freud publicou um texto chamado “O Narcisismo”. Neste texto, ele afirma, em outras palavras, que o bebê, ao nascer, vai ser o depositário dos desejos e fantasias inconscientes dos pais (“sua majestade o bebê”), ou seja, do narcisismo dos pais. Ao fazer esta afirmação, Freud traz a presença do outro na fundação do psiquismo. Desde o princípio, a mente se constrói no relacional: nasce uma criança, que tem os pais na retaguarda e esses pais têm a cultura, numa rede de relações complexas onde o singular e o plural estarão sempre entrelaçados. Os fenômenos sociais têm raízes históricas, sociais e econômicas, mas as emoções e afetos não podem ser deixados de lado das análises e indagações; os fenômenos sociais contêm uma dimensão inconsciente importantíssima.
Freud, como afirmou Renato Mezan, foi um pensador da cultura. Ele analisou fenômenos complexos como a religião e a guerra, usando de seus conceitos de inconsciente, pulsão e Complexo de Édipo, por exemplo. E em um de seus textos mais importantes – “O mal-estar na cultura” – ele fala da importância da comunidade para conter as pulsões e humanizar os homens (controlando seus aspectos mais incontroláveis: a agressividade, as ambições, as rivalidades, etc.). Ele diz: “A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização”. Pensando em nossos tempos, chamados por muitos de neoliberais, em que tudo é pensado no sentido do indivíduo buscar o sucesso a qualquer custo, e que transforma a vida em uma empreitada ultra-individualista, talvez estejamos fazendo o contrário do propagado por Freud, substituindo o poder da comunidade, do coletivo, pelo poder individual, ou seja, um projeto anti-civilizatório.
GUIOMAR: Freud é um pensador, um grande pensador, que através do conceito de inconsciente e da sua teoria metapsicológica iluminou e expandiu sobremaneira a compreensão do funcionamento psíquico. Não só isso, Freud desenvolveu também um método de acesso ao inconsciente, o método psicanalítico, utilizado amplamente no tratamento das dores psíquicas. É indiscutível sua contribuição no âmbito individual e ele insere o ser humano no contexto sociocultural ao desenvolver o conceito do Complexo de Édipo: o ser humano nasce em um contexto de relacionamento primário familiar, essencial ao seu desenvolvimento individual, com repercussões diretas no contexto social.
Em 1921, Freud assim escreve: “Na vida psíquica individual, com efeito, o ‘outro’ aparece sempre integrado (…) e deste modo a psicologia individual é, desde o início, psicologia social”. A proposta do programa científico da V Bienal, será justamente refletirmos e discutirmos o quanto Freud e a teoria psicanalítica continua nos ajudando a compreender as instigantes questões do nosso tempo!
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BLOG: Sobre a aproximação entre psicanálise e cultura promovida pela Bienal ao longo desses anos, como vocês pensaram em trazer os aspectos culturais nesse momento?
JOSIMARA: Se levarmos em conta o que eu disse logo atrás, pensar psicanálise é pensar a cultura, pois não existe um indivíduo sem a cultura que o envolve e que se inscreve em seu psiquismo desde o início. Como psicanalistas, somos muito apaixonados pela clínica, estudamos intensamente e nos aprofundamos nas questões internas e singulares. Mas a Bienal nasceu justamente da necessidade de atravessarmos fronteiras e dialogarmos com outros saberes a respeito do homem contemporâneo. E nesse trânsito, nos encontramos com a filosofia, a antropologia, a psicologia, a história e tantas outras áreas, mas também nos encontramos com as mais diversas expressões artísticas, que alargam nossos horizontes. Os artistas nos antecipam ao captarem as aflições e contradições de nossa época.
GUIOMAR: Acredito que o sucesso dos Eventos Bienais, desde sua primeira edição em 2008, deve-se a este diálogo entre a Psicanálise e a Cultura. Na V Bienal, este diálogo se dará através dos temas citados, que serão desenvolvidos pelos convidados de diferentes áreas do conhecimento (filosofia, sociologia, antropologia, poesia, artes plásticas, literatura) com a apresentação de um contexto teórico-científico, com a perspectiva de provocar reflexões e debates, incluindo conexões nos acontecimentos do nosso dia-a-dia.
Por exemplo, na mesa “Afinal quem é o vilão? Das atrocidades à irreflexão, de que maldade falamos”, a proposta é apresentar estímulos teóricos para a compreensão e reflexão da expressão da maldade, da agressividade, da busca do poder desmedido, observados em um contexto das grandes atrocidades, tais como das guerras, genocídios, assim como nas expressões mais sutis no nosso cotidiano.
Além disso, um programa de atividades artísticas-culturais está sendo organizado para fazer parte e apresentar os temas através de outras linguagens. É por isso que no programa encontramos a denominação “atividade científico-cultural”. Nós somos impactados diuturnamente por acontecimentos, situações, que nos são apresentadas em tempo real e que permanecem em nosso campo mental em busca de elaboração. São manifestações de hostilidade, maldade, ódio, racismo, jogos de poder, desigualdade social, que expõem de forma nua e crua aspectos muito controversos do ser humano. Por acreditar que a Psicanálise tem muito a contribuir nestas reflexões e pode dialogar com as outras áreas de conhecimento, toda a Comissão Organizadora e as Comissões Científica e Cultural vêm organizando um programa estimulante com convidados que nos abrirão perspectivas de ampliação de conhecimento, debates e estímulos ao pensar.
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BLOG: Além das conferências, qual será a programação cultural?
JOSIMARA: Ninguém melhor que a Denise, coordenadora da Comissão Cultural, para responder a esta pergunta. Vou só falar de uma forma geral que, desde o começo de nossas conversas, consideramos que as comissões científica e cultural deveriam trabalhar juntas pois se estamos falando de uma Bienal de Psicanálise e Cultura, o científico e o cultural são indissociáveis. Assim, estamos em um esforço conjunto para realizar atividades integradas: a atividade cultural não é um complemento, ela é também o cerne da programação, ou seja, a programação é científico-cultural.
DENISE: O diálogo entre as comissões Científica e Cultural proporcionou a possibilidade de apresentarmos laços variados e profundos entre os temas abordados pelos psicanalistas, sociólogos, escritores, ambientalistas, poetas e professores, com as atividades culturais que trazem em seu bojo a intenção de enriquecer sensivelmente a compreensão da natureza humana.
Enquanto estávamos mergulhados e inspirados pelas questões dos refugiados trazidas pela exposição do Wei-Wei, buscamos contato com a Orquestra Mundana Refugi, que reúne profissionais da área musical de vários cantos do Brasil e do mundo, e que abrirá as nossas atividades no Teatro Pedro II. Através de seu repertório musical, a Mundana Refugi possibilita um maior contato interno e elaborativo com as próprias emoções, num verdadeiro contato com o nosso inconsciente (im)permeável ao outro/diferente. Ademais, a música proporciona uma abertura para a criação de uma língua comum entre os povos, restabelecendo a importância étnica e a reconstrução da identidade do refugiado na sociedade brasileira.

Seguindo a programação, teremos a participação da Plêiade Companhia de Dança, em uma apresentação anterior à mesa redonda cujo tema será “Afinal, quem é o vilão? Das atrocidades à irreflexão, de que maldade falamos?”, por acreditarmos que através da dança libertaremos a nossa capacidade de ver, sentir e refletir sobre a banalidade do mal em nossos dias atuais.

Ao abordarmos as questões sobre o racismo e sua invisibilidades, escolhemos valorizar a produção cultural através do Canto, com a participação de Fernanda Marx, que é uma cantora com um repertório musical que nos colocará de frente com um sofrimento coletivo que é parte de um passado que vem sendo reatualizado através de intolerâncias e discriminações nas novas gerações. A música “A Carne”, gravada por Elza Soares, quando diz “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, e “Ainda guardo o direito de algum antepassado da cor brigar sutilmente por respeito”, é de uma beleza que faz nascer uma inspiração profunda, de uma extrema lucidez, que nos resgata da imobilidade a que estamos acostumados em nosso dia a dia. Para finalizar essa mesa traremos o pessoal do Centro Cultural Orùnmilá, que fará uma apresentação do Afoxé Omó Orùnmilá, canto yorubá, com dança ao ritmo ijexá trazendo com essas expressões artísticas a força de sua ancestralidade de matriz africana.

Além disso, teremos uma noite de autógrafos que contará com três integrantes do Projeto Choro da Casa, que nos apresentará uma “Roda de Choro” proporcionando uma oportunidade de confraternização de todos os participantes do evento, experimentando a riqueza da convivência de uns com os outros. Estamos preparando vídeos significativos para mesas que abordam questões ambientais e sociais. Haverá exposições de artistas plásticos, que “bebem” de raízes desconhecidas, e que são capazes de provocar-nos e instigar-nos a mergulhar nas variadas camadas de nossas fronteiras internas.
Para encerrar quero lembrar de algo que o poeta Ferreira Goulart disse: “a arte existe porque a vida não basta”.
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