Débora Agel Mellem – Psicanalista, membro associado da SBPRP
Tenho estudado a faceta psíquica dos fenômenos sociais que temos vivido no Brasil, desde a última eleição presidencial, buscando refletir sobre as manifestações de ódio, intolerância às diferenças e ao diálogo, fanatismo e incapacidade para pensar. E para mim, cada vez mais, a psicanálise tem sido fundamental para a compreensão destes aspectos humanos irracionais e destrutivos, que expressam processos mentais inconscientes.

Sigmund Freud em 1921, no texto Psicologia de grupo e análise do ego já dizia que em termos gerais, toda psicologia é social, pois na vida mental do indivíduo há sempre um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente. Assim, só podemos pensar sobre o indivíduo, inserido num ambiente familiar e, em termos mais amplos, num contexto sócio, econômico e cultural. Em textos antecedentes, Freud traz fundamentos importantes, que foram expandidos posteriormente: escreve que o ódio é mais antigo que o amor, surge do repúdio primordial do eu narcísico ao mundo exterior, portador de estímulos e em 1920, apresenta a sua teoria da pulsão de morte e suas vicissitudes na vida psíquica. Psicanalistas como Melanie Klein, Meltzer, Bion, detalharam os mecanismos da violência psíquica, sendo que este último mostrou-nos que existem aspectos humanos que expressam-se de forma mais nítida, somente quando uma pessoa está em grupo. Estes são resultantes de poderosas forças inconscientes e funcionamentos regressivos que todos nós temos, formulados por Bion, em Experiências com grupos, como pressupostos básicos, que consistem em reações defensivas do ego primitivo, contra ansiedades psicóticas.
Antes da pandemia da Covid-19 chegar ao Brasil, já existia um outro tipo de contágio, característico de processos de identificação em massa, marcado por traços infantis de desamparo, ressentimento, revolta, incapacidade de lidar com perdas (econômicas), levando uma parte da população a buscar um salvador, onipotente, criando uma imagem idealizada de um presidente-pai que resolveria todos os problemas, era bravo e castigaria quem não andasse na linha. Estava-se abrindo espaço para o autoritarismo e a aderência cega de adeptos ao governo Bolsonaro. O personalismo narcísico e perverso deste líder, movido pela ganância e interesses pessoais, nega a história de nosso país e propõe ideias fictícias, que atendem à necessidade de certezas de seu seguidores. As negações da realidade, a percepção distorcida da mesma e o desprezo pela verificação dos fatos disseminam-se, com virulência, havendo retrocessos e desagregação em vários setores, dentre eles a educação, saúde, meio ambiente, cultura e projetos sociais. Nosso país já estava muito doente e caótico, mesmo antes da atual pandemia…
A chegada do corona vírus escancarou as vulnerabilidades existentes: o racismo e as desigualdades sociais ficam mais difíceis de serem ignoradas, embora numa mente fanática e/ou gananciosa, a realidade é como lhe convém. Estamos observando que este governo não tem compromisso em salvar vidas, o que tem gerado uma devastação, com um número imenso de mortos por contaminação, em sua maioria pobres e negros. Os profissionais da saúde que estão na linha de frente do combate contra este vírus, estes sim são comprometidos com a vida!
E a população, como podemos entender as atitudes encontradas, diante da ameaça de morte por esta doença complexa e desconhecida? Existem várias realidades vividas em nosso imenso território e não há medidas consistentes e integradoras, feitas pelos órgãos públicos, para o enfrentamento desta pandemia. Vou destacar alguns pré-requisitos psíquicos, que poderiam favorecer a proteção dos cidadãos.
Em primeiro lugar, precisamos ter uma capacidade de abstração, para acreditarmos que um vírus que ninguém vê a olho nu, pode ser tão perigoso. E também ter vivenciado e contido, em certa dose, a fragilidade, o desamparo e a finitude humana, para não sermos tomados por defesas como a negação da realidade e a onipotência.
Para não se encarar o isolamento social (de quem pode fazê-lo) como uma prisão ou tortura, precisamos ter cultivado um mundo interior, a imaginação, uma capacidade de viver solidão e abster-se da mobilidade física como um modo de descarregar emoções. E saber esperar, ou seja, lidar com frustração.
Este conjunto de características exigem um desenvolvimento emocional amadurecido, uma condição de exercer cuidados consigo e também com os outros. É evidente que para se alcançar esta atitude responsável, precisa-se ter recebido cuidados emocionais na família, na escola e nos diversos ambientes em que vivemos, no decorrer da vida.
Utilizo a poesia de Drummond, Inocentes do Leblon (1940), para cuidar da minha dor, tristeza e perplexidade, frente ao comportamento de jovens descuidados (suicidas, homicidas?), do Leblon no Rio de Janeiro, que postaram um vídeo que circulou nas redes sociais, no qual estavam aglomerados em bares, sem o uso de máscaras, na ascensão da pandemia, arriscando as suas vidas e as dos outros.
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
Trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
** Texto previamente publicado na edição de Julho/2020, vol. 03, n.7 do Jornal “O Sísifo”, do NESEF – UFPR (Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre o Ensino de Filosofia da Universidade Federal do Paraná).
11 de agosto de 2020 at 19:17
Excelentes Reflexões
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28 de agosto de 2020 at 16:33
Ótimo texto!!!!!!!
Parabéns!!!! Adorei!!!!
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