Por Josiane Barbosa Oliveira, membro associado da SBPRP
Em recente eleição sobre 100 melhores filmes nacionais, “Estômago” de 2007 destacou-se com louvor.
Película premiada em vários festivais nacionais e internacionais foi dirigida pelo paranaense Marcos Jorge. Colocou-se como um ponto de reflexão e discussão sob vários ângulos, aquecendo nossa “fome de cultura”, com todos os perdões da referência óbvia.

Estômago, o filme, aborda as reminiscências de um presidiário, Raimundo Nonato, que sai do interior para tentar a vida melhor na cidade grande. História de muitos, mas contada com peculiaridade e sensibilidade pelos roteiristas.
A via encontrada para o auto descobrimento de Raimundo é a sua relação com a arte culinária. É sabido que, a via da arte é a função do criativo, do novo, do senso estético, aglutinando aspectos do ser que evocam nos outros seres as mais profundas sensações e/ou sentimentos.
É significativo como não se sabe nada da vida “pessoal” do protagonista antes do contato deste com as destrezas da cozinha. Não é relatado nenhum dado de sua infância, de sua adolescência. Parece que ele começa a “existir” à partir do momento em que entra em uma cozinha. Suas mãos sujas e inexperientes se tornam limpas e ágeis. Muitos artistas colocam-se assim também, fundidos com seu fazer.
Essa questão de “existir” é coisa séria. Todo o meio social, o momento histórico e político, o corpo e a subjetividade se confundem. O filme é narrado em primeira pessoa e a ótica é sempre a do protagonista. O contra-olho é do espectador. Sem contra julgamentos o chefe de cozinha descreve conhecimentos de sabores, culturas, texturas, cores, funções, combinações, quase unguentos de alma. Da mesma forma a plateia é invadida por iguais temperos e químicas sociais e pessoais, na construção de uma mente reativa e sensível que se vê reflexo dos impactos de relações “nuas e cruas” com uma realidade exploradora e fria.
Exíguo em personagens, pouco se sabe também de cada um dos outros componentes da trama, a não ser pela relação com o cozinheiro. Sabe-se dos dois patrões que Raimundo tem, da prostituta com quem ele transa (e para quem cozinha) e de seus companheiros de cela (para quem cozinha também). A maestria de seu fazer com os alimentos é admirada por todos e é sua face no mundo. Raimundo Nonato, cozinheiro, o que transforma, o que inventa, o que sabe “achar o ponto” de cada alimento preparado.
Paralelamente à explosão mental a trama também transita entre elementos muito básicos e primitivos (amor, ódio, raiva, vingança, inveja, paixão) passeando por elaborações mais sofisticadas como a gratidão. O pensamento de Raimundo Nonato usa elementos intrincados, mas perde-se numa concretude acachapante. Nas relações que vai vivendo Raimundo “degusta” as pessoas, extraindo elementos de cada uma. A interpretação magistral de João Miguel nos encaminha para um passeio quase amoral (às vezes beirando o ingênuo) do ativo protagonista. De seus chefes Raimundo apreende o saber culinário, superando-os, de seu líder na cadeia quer a melhor cama, a melhor posição, de sua amante quer “Um pedaço do corpo”, como correspondente de “Um pedaço de alma”.
Observa-se, através da psicanálise, principalmente o jogo dessa contradição entre elementos internos e elementos externos para uma construção de uma realidade psíquica. Desse trabalho mental vai depender a manutenção de uma vida com significados. Refletindo sobre desenvolvimento emocional vê-se que são as experiências que propiciam a regulação dos significados ao longo da vida. Têm-se a chance de modificá-los e o personagem evidencia a dificuldade dessas modificações. Ele opera o fazer para o fazer. O amadurecimento ocorre quando o fazer é permeado pelo pensar.
A intensidade da vida rivaliza com a intensidade da morte. Chega-se a um momento no filme em que as mortes, arquitetadas, mostram-se banais. Como um paralelo que Raimundo faz com o queijo gorgonzola que “fede, mas é valorizado, especial aos paladares dos conhecedores”.
Vida e morte, existência, inexistência, sentido, falta de sentido. Um amplo convite muito contemporâneo, proposto pelo filme e endossado pela psicanálise.
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