por Maruzza Cerchi – Psicóloga, membro associado da SBPRP

No decorrer de um grupo de estudos do qual faço parte, surgiu entre os participantes a seguinte questão: seria possível ensinar Psicanálise de tal forma a uma pessoa “vir a tornar-se” psicanalista? Formulando a pergunta através de um outro vértice: seria possível aprender Psicanálise? A discussão se abriu em direção a diferentes reflexões. Sem pretensão alguma em esgotá-las, elegerei alguns ecos desta fértil conversa.

Fotografia de Maruzza Cerchi sobre a obra “Hands” (1880), de Auguste Rodin, localizada no Musée Rodin, em Paris

Recentemente, pesquisando textos de Psicanálise sobre a temática: “Tempo” em Psicanálise, deparei-me com um Jornal de Psicanálise da SBPSP, do ano de 2011, com o título: Os Tempos da Psicanálise. Ocorreu que um dos artigos deste jornal destacou-se dos demais, despertando, em mim, a vontade em conhecer um pouco mais dados biográficos do referido autor e, quem sabe, outros textos de sua autoria. Mas, para minha decepção, após uma breve investigação, constatei que o autor havia falecido há mais de uma década e que, infelizmente, durante sua longa e reconhecida trajetória psicanalítica, havia realizado apenas algumas publicações. Mas, felizmente, através da ajuda de uma colega da SBPSP, tive acesso a alguns de seus textos, disponíveis na biblioteca desta Instituição.

Na pesquisa que fiz, encontrei do Psicanalista Laertes Moura de Ferrão, ou Ferrão, como  costumava ser chamado pelas pessoas mais próximas, um texto: Congresso Interno da SBPSP: supervisão – Parte II (2001), no qual discorre brevemente, sobre o tema – “supervisão”, destacando, logo no início do texto, que em 1920 Eitingon, Abraham e Simmel fundaram o Instituto de Berlim de Psicanálise, com o intuito de investigação e treinamento psicanalítico e desenvolveram também, neste mesmo ano, o terceiro eixo da formação Psicanalítica, tal seja, a Supervisão Analítica como exigência de formação.

Percebi então que um dos sólidos tripés da formação analítica — a Supervisão — estaria, neste ano de 2020, comemorando seu centenário, merecendo, portanto, uma digna homenagem.

Antes mesmo de ter acesso ao texto do Dr. Ferrão, mencionei no grupo de estudos que a experiência de supervisão foi, dentre outros fatores, muito importante na minha trajetória profissional, em parte, inclusive, propiciadora de um “aprender” Psicanálise.

No texto acima citado, Dr. Ferrão diz que para ele haveria Supervisões e não Supervisão, pois no seu entendimento existiriam diferentes tipos e formas de Supervisão. Ele prossegue relatando a respeito de sua forma de trabalhar como supervisor, cita como exemplo o quanto para ele a Psicanálise deveria ser realizada em uma relação comensal, onde dois objetos se relacionariam para originar um terceiro objeto, que promoveria o desenvolvimento dos três: do analisando, do analista e da investigação analítica. Apesar de não deixar explícito no texto, percebe-se que essa mesma dinâmica ele utilizaria na relação de analista e supervisionando, principalmente ao discorrer que no seu trabalho de supervisão, procurava sempre destacar para o supervisionando os dados que ele (supervisionando) pudesse vir a observar ou intuir na experiência emocional de sua relação com o analisando, dizendo que não ensinaria técnica ou teoria psicanalítica durante a supervisão, por não acreditar que a Psicanálise pudesse ser ensinada. Por meio desta afirmação, Dr. Ferrão demostrava acreditar que, para ele, as pessoas teriam apenas condições de aprender da própria experiência emocional, caso “animados” pela pulsão de conhecer o psíquico, que culminaria em uma habilidade para observar e, quem sabe, até intuir a realidade psíquica.

Diz ele:

“Os bons aplicadores das teorias psicanalíticas aceitos na prática analítica são os que, pelo autodescobrimento, isto é, por si mesmo, redescobrem as teorias intuindo experiências semelhantes àquelas que o descobridor elaborou em suas teorias”.

Então seria possível aprender e não aprender, ensinar e não ensinar em supervisão, em análise, nas escolas, ou, até mesmo, na vida, a depender de alguns ou de muitos e complexos fatores.

A lembrança de outro texto, que data de quase vinte anos atrás, surgiu como auxílio para expandir essas questões: Da procura à escolha – Roberto Kehdy (2000).  Deste texto, destaco ter me identificado, a tal ponto, de citá-lo em alguns dos meus atendimentos ou supervisões.  É um texto cuja reflexão tangencia a anterior, principalmente no que diz respeito às questões: De onde vem o Psicanalista? Quais características que um futuro psicanalista deveria ter? Seria possível ensinar a ser psicanalista? Valeria a pena a leitura na íntegra do texto. Porém, para o nosso propósito, ressaltaria apenas o fato do autor apontar algumas características, podemos assim dizer, quase inatas às quais ele intitula como “essenciais”, que uma pessoa precisaria “ser” ou “ter” para se tornar um psicanalista, e algumas outras que, na sua percepção, a pessoa poderia aprender ou vir a desenvolver.

Curiosidade, ousadia, amor à verdade seriam algumas das características essenciais, reconhecidas por ele, como presentes em algumas pessoas desde a infância, ou seja, difíceis, ao que tudo indica, de serem “ensinadas”. Algumas outras funções, acrescenta ele, tais como:  a área intermediária, capacidade negativa, rêverie, capacidade de reparação, que poderiam culminar numa ampliação da condição simbólica e, consequentemente, em melhores condições empáticas, figurariam como possibilidades a serem desenvolvidas em análise pessoal e, porque não, nas atividades de supervisão, a aniversariante centenária?

Por fim, como conjectura imaginativa, ocorreu-me e, faz algum sentido que talvez uma das razões pelo qual Dr. Ferrão escrevera “pouco” ou publicara “poucos” artigos durante seu percurso profissional, seja pela ênfase que ele conferiu à importância da experiência emocional ao se pensar no ensino da Psicanálise. Seria como se “realizasse” (Bion) no seu trabalho, o que acreditava teoricamente, reservando o aprender às experiências emocionais mais íntimas, profundas e vivenciais. Ou seja, podemos conjecturar que, caso alguém tenha tido a oportunidade de aprender Psicanálise com o Dr. Ferrão, certamente teria sido pela via de um contato efetivo/afetivo com a sua pessoa.

Celso Antônio Vieira de Camargo, no texto de sua autoria: Do aprender com a experiência ao contato psíquico genuíno (2011), ressalta a importância de dois fatores no processo de aprender com a experiência emocional. Ele diz:

“Um deles é a capacidade de tolerarmos situações difíceis e frustrantes. Ou seja, nossa capacidade de continência. O outro é a possibilidade de darmos sentido psíquico à experiência pela qual passamos, e, por meio desse sentido psíquico, aprendermos sobre ela e sobre a vida”.

Fica evidente que, sem nos expandir e nos aproximarmos das sutilezas apontadas por esses psicanalistas e, ainda mais, das variações presentes na complexidade existente na dinâmica de cada pessoa, tanto no campo intrapsíquico, como no campo intersubjetivo, qualquer aproximação desta temática estaria fadada a naufragar.

Assim, em se tratando de Psicanálise, não existira apenas “supervisões”, como acreditava Dr. Ferrão. Mas existiriam sim, poderíamos dizer, “análises”, “sessões”, “cursos”, “grupos de estudos”, “publicações” e “leituras”.  O Plural, reiterando e revelando o singular e o único nas subjetividades e do aprender com as “experiências emocionais”.