por Ignácio A. Paim Filho

Inconfidência de Vinte – Pulsão de Morte o Assombrosamente Belo
(1920/2020)

A inconfidência de vinte, tendo como indicador uma estética
do assombro, que transpõe as bordas restritivas do belo […],
sintetiza de forma paradigmática a postura freudisbpana do não
se deixar acomodar, o não ficar submetido ao poder exercido
pelo saber vigente. (Paim Filho, 2019)

Ignácio A. Paim Filho

Viena, março de 1919, Freud começa a rascunhar o Além do Princípio do Prazer. Entretanto, vai se passar mais de um ano, para que esse rascunho venha a adquirir sua forma definitiva: setembro de 1920 vem à luz. Tempo de espera, tempo de maturação, tempo de ousar ser inconfidente? Tempo de retornar a navegar pelas águas turvas do Acheronta ampliando as fronteiras das origens?

Trabalho denso e tenso que revela uma nova dualidade pulsional – pulsão de morte versus pulsão de vida. A supremacia do princípio do prazer, calcado nos destinos da pulsão sexual, com sua força desejante, é desalojado em prol de algo mais arcaico, mais elementar e mais pulsional (Freud, 1920) – o desgarrado da pulsão de morte. O demoníaco, o infernal, impondo-se e recriando a concepção que humano tem de si – a inegável existência do mal (Freud, 1930).

Freud, o inconfidente, se faz confidente de um original saber. A destrutividade humana adquiri novos contornos – o mal radical nos habita. O Conquistador de novos territórios da alma vai ampliando o até então conhecido, estruturando um pensar, altamente subversivo, no decorrer da década de 1920 a 1930. No descortinar desse tempo, o conceito de pulsão de morte, se faz agente de turbulências nas proposições vigentes – flexibilizando fronteiras – possibilidade de dar narrabilidade para uma memória sem futuro. O irrepresentável, o traumático sem tradução, sai dos bastidores e passa a ocupar um lugar inédito no palco psíquico. Nesse cenário, surge de forma contundente, uma problemática que transpõe as fronteiras do século XX e adentra, com todo vigor, no século XXI, registro da perenidade desse texto centenário: a inter-relação entre o representável e o não representável, entre o sexual desejante e o sexual sem desejo, entre o inconsciente recalcado e o não recalcado, ou ainda, entre o filicídio e o parricídio: […] tendências que seriam mais arcaicas e que atuariam de forma independente do princípio do prazer (Freud, 1920).

O princípio de nirvana realocando o seu lugar na economia psíquica – silenciar a ‘febre chamada viver’ (Freud, 1926) – com sua perigosa pretensão de eliminar tensões. A morte do desejo. Contexto condizente com as ideias do filosofo Byung-Chul Han (2017) sobre a sociedade do mero viver? Essa compreendida como um excesso de positividade, numa busca desmedida pelo desempenho, onde a dor do não saber é vista com desvalia. Com essa configuração o saber da morte é sentido como pura catástrofe: Sem a negatividade da morte a vida enrijece em morte. A negatividade é a força vital da vida (Han, 2017).

Nesse processo, de inconfidências, vai se redesenhando uma nova cartografia da psique, dos limites precisos da tópica de 1900 para os limites imprecisos da tópica de 1923. Essa que traz consigo a possibilidade de significar e ressignificar conceitos. Diante desse panorama, no paragrafo inicial do Eu e o Id, nos diz da sua ambição, trabalhar o tema da pulsão de morte mais além da biologia: Agora, contudo, estamos em outro momento e as hipóteses deverão ser relacionadas a fatos estritamente derivados da observação psicanalítica (Freud, 1923) – conjunção propícia para delimitar fronteiras entre a vida/morte biológica e a morte/vida psíquica. A subjetividade sobrepujando a força ofuscante da objetividade, delineando novos caminhos, na dialética do ser e o ter: convocatória para uma reflexão estética sobre o que somos, o mais além dos nossos neurônios. Delírio na teoria ou verdade no delírio (Freud, 1911)?

Essa nova era se faz confidente, de forma explícita, em 1924, com a concepção de um masoquismo primário, ponto de inflexão de seu pensar metapsicológico: condição de permeabilidade na impermeabilidade sinistra que o conhecido advoga. Nesse percurso a pulsão vai além da fronteira entre o somático e psíquico. Com essa verdadeira revolução intelectual, os objetos primários afirmam o seu protagonismo, reiterando as ideias esboçadas no texto do Narcisismo e do Luto e Melancolia, sobre o seu lugar na estruturação do sujeito. A trama articulada em torno da pulsão de morte, com sua origem no soma, e a pulsão sexual, com sua provável, ou ainda, improvável fonte no objeto, cria condições para pensar o masoquismo, como matriz fundante da psique (Paim Filho e Terra Machado, 2018). Sendo assim estamos destinados a nascer, crescer e morrer inseridos na dor, mas em busca do amor? Crueldade e compaixão – deter-se diante da dor do outro – marcando destinos. Convite a especular a interação sinistra entre o masoquismo-narcisismo, mediados pelo trabalho elaborativo do luto versus o trabalho insano da melancolia.

A pulsão de morte vai desacomodando o saber instituído, de Freud ao nosso tempo. Em seu duplo vértice como destrutividade tanática e/ou como destrutividade criativa: o assombrosamente belo – nuances de uma estética do espanto. Com tal roteiro como indicador, no texto A Negativa, encontramos um fértil celeiro, para refletirmos o trabalho em prol da vida na negatividade, diante do império tanático da violência da positividade. O não do recalque – inscrição da alteridade – abastecida pela força disruptiva da pulsão de destruição, é uma amostra do seu caráter gerador de trabalho psíquico: o desejo recalcado se faz conhecer pela negação. A lei, paradoxalmente, delimitando fronteiras e alimentando alargamentos éticos para a realização do desejo. A sublimação, em sua intima relação com a criação e seu endereçamento ao outro, exige novas teorizações, com advento da dualidade Eros versus Thánatos: jogo fecundo entre desconstrução, construção e reconstrução. Por essas paragens, que abrigam sombra e luz – o inferno de Virgílio – se faz fonte de invenção, no caldeirão pulsional freudiano?

Como essa breve narrativa – com suas congruências e incongruências – sobre o pulsional, com seus desdobramentos psíquicos e na ordem social, a partir da inconfidência de vinte, convidamos a todos para participar da V Bienal de Psicanálise e Cultura da SBPRP. Essa que pretende ser um ponto de abertura, visando transformações, para dialogarmos com as fronteiras impermeáveis e permeáveis de nossa vida cotidiana. Vida cotidiana que se encontra sobre o impacto ininterrupto de uma pandemia viral – com sua letalidade mortífera. A morte fazendo fissuras no ideário do Homo Deus (Harari, 2016)? A fragilidade dos nossos corpos, a força indomada da natureza, o inapreensível da vida psíquica (Freud, 1930), em seu conjunto, desafiam o nosso saber e nos convocam, mais do que nunca, a refletir quais os destinos da era do Antropoceno (P. Crutzen, 1995). Essa que tem no humano, com seu anseio de domínio, o grande protagonista…

Aguardamos vocês, mantendo como sinalizador inquietante a proposição freudiana, de 1900: Flectere se nequeos superos Acheronta movebo (Eneida de Virgílio), ou seja, Se não posso dobrar os poderes celestiais agitarei o inferno”.

Abraços
Até breve

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