Na última quarta-feira, dia 24, a SBPRP promoveu um evento interno com o tema “Psicanálise implicada: a relevância dos serviços de atendimento em psicanálise”.

Participaram como palestrantes Ana Rita Nuti Pontes, membro efetivo com funções didáticas da SBPRP, Alice Becker Lewkowicz, membro associado da SPPA, e Magda Guimarães Khouri, membro associado da SBPSP.

Gostaríamos de compartilhar com todos o comentário de Ana Rita:

“A Psicanálise implicada: a relevância dos serviços de atendimento em psicanálise”

A ideia de uma psicanálise aberta ao público, especialmente àqueles que não têm condições de pagar por um tratamento, teve como expoente o próprio Freud que dizia que,  “Se a psicanálise, ao lado de sua significação científica, tem valor como procedimento terapêutico, se é capaz de fornecer ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização, esse auxílio deveria ser acessível também à grande multidão, demasiado pobre para reembolsar um analista por seu laborioso trabalho”. (Ego e o Id)

 Em setembro de 1918, por ocasião do V Congresso Internacional de Psicanálise em Budapeste, pela primeira vez, Freud defendeu a criação de centros psicanalíticos de atendimento público e gratuito.  Freud queria que a psicanálise fosse incluída como uma política social de saúde pública em função dos problemas com as neuroses de guerra. Foi em 1920, nos primeiros anos da República de Weimar, com Berlin tendo se tornado o principal centro da psicanálise, que a ideia de um centro de tratamento psicanalítico público retornou à pauta.

No ano de 1920, uma clínica e um instituto berlinense foram inaugurados dentro do modelo que hoje chamamos de “clínica-escola” – havia aqueles considerados analistas e terapeutas em formação. A ideia condizia com o que fora proferido por Freud em Budapeste: (Caminhos da terapia analítica)

Em algum momento a consciência da sociedade despertará, advertindo-a de que o pobre tem tanto direito a auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem cirurgias vitais. E que as neuroses não afetam menos a saúde do povo do que a tuberculose.

Esta foi a primeira experiência da psicanálise no âmbito da saúde pública, de caráter filantrópico. Freud sabia que, no início, essas instituições dependeriam da filantropia de analistas, mas acreditava que, em algum momento, o Estado se responsabilizaria por essas instituições, inclusive reconhecendo-as como “deveres” do Estado.

Pois bem, 100 anos depois, estamos aqui reunidos para conversar sobre a Psicanálise implicada e a relevância dos serviços de atendimento em psicanálise.

Freud desde os primórdios, mostrou a importância da psicanálise para o sofrimento humano. As palavras dele, “se é capaz de fornecer ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização”, faz parte do dia a dia de um analista. O seu olhar para a dor e as mazelas humanas, fizeram com que ele pensasse desde aquela época, um modo que o olhar e a escuta analítica pudessem beneficiar  também os menos favorecidos.

A primeira coisa me vem à mente é sobre esta psicanálise que se/nos encastelou ao longo dos anos, transmitindo à população a ideia que o que fazemos serve somente à uma elite econômica e intelectual. Acredito que todos fomos responsáveis por esta construção, tanto como forma de preservar o nosso narcisismo, quanto para reafirmar as técnicas psicanalíticas que preconizavam um modo de fazer a psicanálise que favorecia, e muito, o contato do analista com suas próprias teorias e modelos e consequente mente o distanciava da mente do seu paciente. Como se a observação do campo analítico só pudesse ocorrer dentro de determinado enquandre, estávamos emparedados por um setting que restringia o trabalho analítico. Atualmente sabemos que a psicanálise foi se transformando e se expandindo e que o nosso setting é algo vivo, que se presentifica a cada dia.

Psicanálise implicada, Psicanálise extra-muros, Psicanálise a céu aberto. Magda e Alice têm muito a nos contar sobre isto.

O Serviço de atendimento e a Psicanálise Implicada na SBPRP

Em toda a história da psicanálise, a preocupação com aspectos sociais sempre esteve presente, e em inúmeras Sociedades foram criados Centros de Atendimento, para populações menos favorecidas.  Na SBPRP este serviço foi criado pelo Dr. Junqueira, quando foi nosso presidente, nos anos 2000. Prestar atendimento em psicanálise que fosse economicamente acessível, à uma população que não podia arcar com os custos de uma análise de 4 sessões semanais, em um consultório particular, alinhava a nossa sociedade às outras sociedades do mundo.

De modo que, desde o seu início, o serviço de atendimento, tinha também o objetivo de ser um tipo de “clínica-escola” como citado por Freud, onde os membros filiados pudessem receber pacientes que queriam fazer uma análise de 4 sessões semanais e assim beneficiarem-se para fazerem as supervisões oficiais. Os membros da sociedade sempre participaram, como parte do quadro de analistas, oferecendo análise ou supervisões aos colegas da comunidade psi. O Serviço de atendimento, hoje o DAP (Departamento de Atendimento em Psicanálise) é aberto a todos (membros e membros filiados) que queiram participar.

Muitas pessoas se beneficiaram deste serviço ao longo destes 21 anos, e acredito que se não fosse através do DAP (departamento de atendimento em psicanálise), estas pessoas nunca teriam podido viver a tão importante e transformadora experiência de uma análise de 4 sessões semanais.

Neste mesmo ano foi criado o projeto Cinema e Psicanálise e a SBPRP incrementou seus primeiros passos em direção à comunidade, provocando nas pessoas interesse e curiosidade pelo olhar psicanalítico, pelo desejo de se ouvirem através dos comentários dos filmes feitos pelos nossos colegas e se sentiam estimuladas, curiosas e interessadas em procurar uma análise. E foi assim que, o Cinema e Psicanálise é até hoje, um importante polo de estímulo para as pessoas procurarem o DAP.

Acredito que este início foi muito importante, não só pelo diálogo que a sociedade de psicanálise começava a ter com a comunidade, mas também, para nós analistas, que nos víamos desafiados a falar sobre psicanálise para um público leigo – mas conhecedor e interessado nas mazelas da alma – sobre nossas teorias, nosso olhar e modo de pensar a vida. A psicanálise deu um salto nestes 21 anos, no que tange seu contato com a comunidade, acontecendo extramuros, fazendo inserções que hoje em dia tornaram-se parte do funcionamento de muitas instituições (escolas, hospitais, fóruns). E acredito que existe uma troca continua, pois o analista que conversa com o público, que está ativo na sua comunidade, viverá experiências muito transformadoras facilitando sua comunicação com o outro. Em outras palavras, falamos menos psicanalistês.

A partir deste início, a SBPRP foi caminhando em direção à comunidade e chegou nas escolas, nos hospitais e Fóruns através do Serviço de Consultoria. Aconteceu um movimento muito bonito, pois aquela psicanálise que outrora parecia tão inacessível, era possível de ser usufruída. As instituições começaram solicitar a presença de um analista e de seu olhar pois o mundo psíquico e o inconsciente foram ganhando cada vez mais relevância. E profissionais que trabalhavam nestas instituições, também procuravam o Serviço de Atendimento para fazerem análise.

Atualmente, além de estar presente em todas as instituições citadas acima, os analistas interessados oferecem supervisões aos residentes em psiquiatria, e ao serviço de distúrbio alimentar do HC. Há vários anos o projeto “Semeando a Psicanálise” voltado para os jovens estudantes, mas não só, tem sido referência de qualidade do pensamento psicanalítico, pois trata de importantes temas através do olhar do psicanalista. Uma outra vertente do semear a psicanálise que estimula os interessados a fazerem análise que procuram o DAP.

Todos estes projetos extramuros cumprem a função social da psicanálise, como bem postulou Freud desde o seu início. A psicanálise está implicada, e não só aplicada. Todas estas atividades são também uma forma de levar a qualidade do método psicanalítico de maneira mais abrangente.

Stefano Bolognini, já no final de seu mandato como Presidente da IPA em 2015, quando veio a São Paulo para um congresso da FEBRAPSI, participou de uma plenária cujo tema era “Engajamento do analista no social” e destacou que o próprio processo psicanalítico já exerce uma função social quando favorece a transformação pessoal das pessoas.  Esse processo afeta também a cultura, a “mentalidade”, os padrões de relações interpessoais e o ambiente global das comunidades humanas. Sobretudo na cultura atual, com o excesso alienante das tecnologias e da informatização, que traz o risco de desconexão do contato do sujeito consigo mesmo (self) e com os outros, a psicanálise tem a possibilidade de promover a recuperação de elementos de humanidade que têm sido perdidos.

Ele mostra como entende que a psicanálise cumpre sua função social quando afirma:

Uma sociedade, com seu sistema mental comunitário, sem o conhecimento suficiente de si mesma e da realidade não alucinatória (vertente do EU), sem consciência moral adequada e sentido de limites (vertente do SUPEREU), sem capacidade de reconhecimento das necessidades fundamentais e naturais dos indivíduos e da comunidade (vertente do IDE e do SELF), sem florescimento de ideais evolutivos e objetivos comuns aos quais aspirar (vertente do Ideal do EU), seria uma sociedade doente. (Bolognini, 2015)

Diante o trágico momento que a humanidade está vivendo, que parece ser mais que um período, mas uma ERA, nossa ajuda tem sido muito requisitada para dar conta da angústia e do terror que estas pessoas estão vivendo diante uma situação tão hostil e dolorosa diante tantas perdas.

Freud facilitou a criação de um serviço de psicanálise que pudesse beneficiar as pessoas com o problema da neurose de guerra e estamos nós, aqui e agora, diante um cenário apavorante de desgoverno e desprezo pela vida humana, está acontecendo um genocídio. As pessoas estão aterrorizadas diante o caos e buscam serem ouvidas e assistidas psiquicamente.

O analista, que até pouco tempo faz, era tão resistente a encontrar seus pacientes virtualmente, hoje em dia assimilou esta nova condição e mais que nunca o serviço de atendimento em psicanálise, para muitos, tornou-se tão essencial quanto o tubo de oxigênio. A SBPRP está engajada em dois tipos de atendimento gratuito nesta pandemia.

Estas necessidades tão fortes e prementes, nos solicitam sermos criativos e repensarmos o setting a cada dia. A atitude mental do analista, a sua postura, vai permitir que avancemos espaços antes nunca imaginados. Através do atendimento por vídeo vivemos situações para lá de inusitadas e é o eixo analítico, presente na mente do analista, que vai manter o enquadre, a direção.

De modo que, assim como no início, quando se pensava que o lugar da psicanálise era estritamente dentro dos consultórios, hoje sabemos que não é assim. Principalmente neste momento. Diante tanta dor e tantas perdas as pessoas lutam também para preservarem a sanidade mental, a encontrarem recursos internos para lidar com a dor, com o luto, com a barbárie, com o desespero, com a loucura.

Acredito que a boa formação dos nossos membros, a boa psicanálise internalizada pelo analista vai ajudá-lo a ser criativo, encontrar vitalidade para dar conta de uma realidade tão hostil.

Para finalizar, quero dizer que este é um momento do psicanalista implicado, envolvido, unido, entrelaçado com a humanidade.

Temos algo muito especial e importante para oferecermos as pessoas, algo que é próprio do psicanalista que é a presença viva de alguém que pode fazer companhia e ajudá-las a pensar e encontrar algum sentido, mesmo quando parece que nada faz sentido.

Referências:

Bolognini, S. (2015). La función social del psicoanálisis. Palestra pronunciada em sessão plenária internacional com o tema “Engajamento do psicanalista no social” – Congresso Febrapsi São Paulo.

FREUD, Sigmund (1923). O ego e o id. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Trad. de J. Salomão, Vol. 19). Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 319.

 FREUD, Sigmund (1919). Introdução a Psicanálise das Neuroses de Guerra. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”); Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Trad. de Paulo César de Souza, Vol.14). São Paulo: Companhia das Letras, 2010a, pp. 382-388.

Foi com a Constituição de Weimar de 1919 que os direitos sociais ingressaram na história do constitucionalismo moderno, engendrando o moderno Estado Social sob os preceitos do intervencionismo estatal. O modelo seria precursor do que se desenvolveu posteriormente como Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). KERSTENETZKY, Celia Lessa (2012). O estado do bem-estar social na idade da razão: A reinvenção do estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier.

FREUD, Sigmund (1920). Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Trad. de J. Salomão, Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 227-231.

 GAY, Peter (2012). Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras.

 FREUD, Sigmund (1919). Caminhos da terapia psicanalítica. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”); Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Trad. de Paulo César de Souza, Vol.14). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b, pp. 279-292.

 FREUD, Sigmund (1919). Caminhos da terapia psicanalítica. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”); Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Trad. de Paulo César de Souza, Vol.14). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b, p. 291, grifo nosso.

FREUD, Sigmund (1919). Caminhos da terapia psicanalítica. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”); Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Trad. de Paulo César de Souza, Vol.14). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b, p. 292.

Revista Lacuna  4 de junho de 2018  artigon. -5. Uma experiência de clínica aberta de psicanálise por Adriana Simões MarinoAugusto Ribeiro Coaracy & Thiago Oliveira

Ana Rita Nuti Pontes

Março de 2021