texto por Maria Aparecida Sidericoudes Polacchini,
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ntegrante da Comissão Científica

A V Bienal de Psicanálise e Cultura vem promovendo uma interlocução com profissionais de diversas áreas do conhecimento e da ação cultural e social, com o objetivo de refletir sobre situações que ferem a dignidade do homem, produto de conjunturas sociais e políticas, tal como o descaso com a educação e cultura, que fomenta obscurantismo, hostilidade e intolerância às diferenças, cria distorção de pensamento, excita o fanatismo, exacerba preconceito, como racismo, xenofobia e homofobia, e censuras reacionárias que se interpõem à liberdade de expressão e rechaçam propostas inovadoras. 

As dores humanas são objeto de estudo da Psicanálise. Freud desenvolveu uma aguda observação da dor psíquica e ampliou este estudo às relações do indivíduo com seu meio, mais amplamente com as instituições e a civilização, e questionou a ordem social e política. Reconheceu a hostilidade narcísica de uns contra os outros e em relação às instituições questionou se as leis que as regem não poderiam ser mais benéficas, já que criadas pelos próprios homens. Em relação ao homem, identificou que para além de forças amorosas e construtivas ele pode se aniquilar com a própria hostilidade. Reconheceu ainda que na vida pessoal e grupal o traumático que não é lembrado (inconsciente reprimido), é repetido, e alertou para a tomada de consciência de nossa história, para que experiências traumáticas sejam lembradas e elaboradas, libertando escolhas criativas e construtivas. Identificamos nas questões atuais as observações de Freud, realizadas há mais de um século. 

Freud, ao construir sua teoria sobre a vida psíquica o fez tendo não apenas como referência o tratamento de seus pacientes, foi além, ultrapassou a fronteira do indivíduo para a história da humanidade e suas produções culturais. Pesquisou a Linguagem, a Dramaturgia, a Literatura, a Mitologia, a Filosofia, a Arte, a Biologia, a Antropologia, a História, a Arqueologia e a Religião, de onde extraiu elementos valiosos para fundamentar e confirmar sua construção teórica, inicialmente objeto de incredulidade de muitos. 

A Psicanálise venceu resistências, tornou-se um legado da humanidade e continua com suas gerações de psicanalistas estabelecendo com as culturas forte interlocução. Esta é a marca de origem e de desenvolvimento da Psicanálise e é sob este signo que deve estar orientada para o futuro.  

Esta relação de mão dupla impõe, a nós, psicanalistas, a tarefa de prosseguirmos favorecendo a comunicação das interfaces da Psicanálise com as culturas. Nossas Bienais mantém o compromisso deste diálogo que tem uma importância tanto para atualizar nossas construções teóricas quanto para disponibilizar o conhecimento psicanalítico ao mais amplo público interessado. Assim, também, a Psicanálise expandiu-se a partir do pequeno círculo vienense de psicanalistas, intelectuais, escritores e artistas em torno de Freud, transpôs as fronteiras europeias, alcançou longínquos territórios, como o americano e latino-americano e, hoje, as terras asiáticas. De um pequeno grupo de pessoas interessadas na nova ciência do psiquismo, avançou para a criação das Sociedades de Psicanálise e para a formação de psicanalistas: instituições que fazem parte da Associação Internacional de Psicanálise (IPA). 

A Psicanálise nos pede um diálogo sempre aberto, da clínica com as culturas, consciente de que não podemos negligenciar os novos fatos clínicos que sofrem direta ou indiretamente influência substancial dos fatos sociais e políticos. Buscamos compreender profunda e amplamente as relações humanas, subjetivas e intersubjetivas, o indivíduo inserido em sua comunidade e cultura.  

Acreditamos que paira sobre nós a tarefa de continuar promovendo e consolidar este processo permanente e vivo de inspiração, indagação e reflexão, sobre o homem e seu meio, necessário à produção do conhecimento psicanalítico a despertar novos pensamentos e mobilizar novas soluções para o viver. Usando o modelo contemporâneo, da globalização, vislumbramos fronteiras acessíveis ao trânsito de ideias, numa relação criativa entre a tradição e a inovação.

Assim, nos compete recriar continuamente a Psicanálise, com olhares múltiplos, enquanto saber em contínuo movimento pela busca da verdade e do valoroso direito à palavra. Assim como para se compreender os processos psíquicos é preciso vencer resistências, também é da história da edificação e manutenção da Psicanálise, em todos os tempos, romper barreiras de obscurantismo que cerceiam o indivíduo, para continuar avançando em direção à liberdade de pensamento e expressão ou, como propõe esta mesa, abrir fronteiras, tornar permeável o até então impenetrável, para que as questões que dizem respeito à vida humana – sobretudo o ódio que hostiliza, segrega e expulsa o que deveria incluir – possam ser ampla e fecundamente pensadas.

Para isto, estaremos oferecendo nesta mesa um fértil encontro, numa interlocução entre psicanalistas comprometidos com importantes questões atuais, especialmente relativas a preconceitos de toda a natureza que afetam a decência humana e promovem dores profundas na alma do indivíduo e da própria sociedade que os produz. Estaremos com Magda Khouri, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, atenta às transformações culturais, sociais e políticas que em nosso país e no mundo atingem as relações humanas e influenciam inevitavelmente o trabalho clínico e colocam os psicanalistas diante de um compromisso social de atenção à comunidade, Silvana Réa, também da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, cuja formação psicanalítica entrelaçada à arte, lhe permite um olhar singular às questões culturais e sua íntima relação com a clínica e Sergio Nick, vice-presidente da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), com visão ampliada sobre as questões atuais enfrentadas pelos psicanalistas, de todos os continentes, diante das grandes transformações sociais que afetam a vida humana, engendradas pela globalização. 

Esperamos você para participar desse fim de semana de encerramento da V Bienal e ao final das apresentações desta mesa você poderá expressar suas inquietações em relação ao tema tratado, através de perguntas que enriquecerão a discussão. Até lá.