Breve comentário sobre “O velho que não sente frio” de Daniel Francoy
por Victor de Barros Malerba, membro filiado da SBPRP
Espera-se que um brevíssimo aperitivo do livro O velho que não sente frio e outras histórias, de Daniel Francoy*, possa instigar a curiosidade de quem tem “vagalumes acesos” dentro de si.
A história começa com a descrição de um evento fictício numa praça em Ribeirão Preto: uma mulher que pega fogo. No decorrer do livro, o narrador aborda esse fato a partir da perspectiva de três personagens diferentes — o que cada um deles sente diante do acontecido, e também o que sentem mas não conseguem acessar claramente.
De posse de um olhar honesto para a vida, deixando de lado a “purpurinização” do mundo, o autor narra as repercussões emocionais nas testemunhas da violência vivida pela personagem para a qual a única sublimação possível não foi aquela do conceito psicanalítico, mas sim a sublimação concreta da substância corporal em estado sólido que passa imediatamente para o estado gasoso: do próprio corpo pegando fogo.
Com trechos que lembram um ensaio fenomenológico sobre a percepção, mas sem a obrigação de o ser, as imagens poéticas de sua prosa permitem alcançar nuances mentais que não poderiam ser representadas de maneira teórica ou racionalista:
“O espanto existe quando a percepção da realidade alcança um ponto em que se torna, a um só tempo, uma fratura e uma pergunta. A mãe que não iria morrer aos trinta anos, mas morre (…) ou, para ser mais prosaico, a visão de uma garça branca pousada na margem poluída de um ribeirão que segue paralelo a uma avenida de extremo movimento (…) Agora, um vagalume aceso é uma pergunta-espanto no coração do velho. Este sou eu?, diante do próprio rosto refletido no espelho, com uma rachadura cruzando a superfície vítrea no sentido horizontal, na altura da boca. (…) O que sabemos até agora: Sabemos que os vagalumes se acendem e se iluminam, e que da mesma forma surge e se apaga o espanto no coração do velho enquanto sai de casa rumo ao bar” (Francoy, 2020).
Aqui e sempre, o olhar poético é a lupa necessária para vislumbrarmos a precariedade do humano, a impossibilidade de transcendência, o “borrão movediço” que constitui a imagem que podemos ter daquilo que somos intimamente a cada instante, em vez de um límpido reflexo no espelho: “… simplesmente se lembrava de modo aleijado”. Ou: “Como um argumento sem palavras, surge algo como uma vontade de dormir”. Francoy nos relembra, assim, que a condição poética é o que permite sentir e suportar a dureza do olhar que lida com as evidências de que não somos anjos, mas sim seres humanos feitos de carne, possuidores de olhos também de carne, que acessam a realidade através de suas vidraças repletas de rachaduras e impurezas.
> Assista a entrevista com Daniel Francoy: https://sbprp.com/2022/02/07/berggasse-19-projeto-editorial-1o-semestre-2022-partos-e-partidas-2/

*Daniel Francoy é escritor ribeirão-pretano, autor de livros publicados no Brasil e em Portugal, vencedor do prêmio Jaboti em 2017 na categoria Poesia.
Referência:
Francoy, Daniel (2020). O velho que não sente frio e outras histórias. São Paulo: Edições Jabuticaba
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